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17/07/2020

Trabalhadores da saúde em pandemias: 1918 e 2020

Renilson Beraldo*


Estamos acostumados a ouvir falar que os profissionais, os trabalhadores da saúde, salvam vidas. Atualmente, em meio à pandemia de Covid-19, ouvimos histórias inspiradoras cujos personagens principais no enfrentamento direto à doença são atores de diversas áreas e especialidades do campo das ciências da saúde: medicina, enfermagem, radiologia, ortopedia, cardiologia, psicologia, entre outras. O sentimento que estas histórias nos causam é algo que elaboramos relativamente bem: sentimos uma mescla de orgulho e esperança, como se conseguíssemos ver uma luz no fim do túnel em meio à crise. Por outro lado, nos damos conta de que não estamos acostumamos com o fato de que tais profissionais também perdem suas vidas. E, com elas, trajetórias e projetos de ciência em andamento são, por vezes, retardados, reorientados ou interrompidos.

Na primeira semana de julho de 2020, o Sindicato dos Médicos de São Paulo atualizou o número de médicos que perderam suas vidas atuando contra o novo coronavírus no Brasil. Já são quase 170 nos últimos três meses, sendo os estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Pará os que mais perderam trabalhadores. Segundo o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), o Brasil é líder mundial no número de enfermeiros falecidos por Covid-19, totalizando 208 até a última semana de junho. De acordo com o International Council of Nurses (ICN), tais números alertam para as condições e estruturas de atuação destes profissionais e trabalhadores da saúde, como a falta de equipamentos de proteção individual (EPIs), além de advertir-nos de que uma segunda onda da pandemia seria ainda mais terrível sem a presença de tais atores.

Elaboramos muito mal a perda de profissionais, cientistas e trabalhadores da saúde contaminados pelo novo coronavírus. Com base em nossas expectativas, sentimos medo, preocupação, ansiedade e os estigmatizamos socialmente, como se potencializem a transmissão do vírus; vimos isso desde o início da pandemia em vários exemplos de diferentes países. No caso da enfermagem, esta carga estigmatizante abate-se sobre experiências passadas – por vezes frustradas – de luta por jornadas de trabalho mais justas, formação continuada, piso salarial e melhores condições de repouso. Infelizmente, é o olhar sobre estas lutas que geralmente não estimulamos.

Até o mês de junho, o Ministério da Saúde havia processado cerca de 432 mil testes na categoria dos profissionais da saúde, sendo que 83 mil haviam testado positivo para a Covid-19. Enfermeiros e médicos lideram a lista, seguidos de farmacêuticos, bioquímicos, nutricionistas, dentistas, fisioterapeutas, psicólogos e psicanalistas. Com o incremento no número de testes, aumentam também as estatísticas de profissionais infectados. Tal situação levanta questionamentos a respeito das condições de trabalho dos profissionais de saúde e da importância de maior visibilidade destes profissionais nos registros estatísticos da doença.

A história da atuação e do cuidado médico é também a história de perdas humanas com impactos institucionais de largo aspecto. No presente texto, proponho uma mirada reflexiva para eventos de contexto epidêmico ocorridos no passado, com foco na medicina paranaense. É um convite para olharmos também para a categoria de profissionais da saúde que atuam na linha de frente de combate ao atual coronavírus.

No dia 14 de julho de 2020, o Brasil contabilizou um total de mais de 1,9 milhão de infectados e 74 mil mortes por coronavírus. Nove estados apresentam tendência de crescimento de casos, dentre eles o Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. Este último conta com 45 mil casos e 1.100 mortes atualizadas. O número exorbitante de vítimas totais pelo novo coronavírus em todo o Brasil já é superior ao número de habitantes da cidade de Curitiba e sua região metropolitana no ano da epidemia de gripe espanhola: 73 mil. Vitimada pelo cólera no século XIX, a cidade enfrentaria a febre tifoide em 1917 e a gripe espanhola no ano seguinte, contabilizando nesta última um total de 45.249 enfermos e quase 400 mortes entre outubro e dezembro de 1918.

Desde o final do século XIX, a cidade de Curitiba contava com instituições de saúde atuantes junto à população do estado: a Santa Casa da Misericórdia, fundada em 1896; o Hospício Nossa Senhora da Luz, fundado em 1903; e a Maternidade do Paraná, fundada em 1914, são alguns exemplos. Naquele contexto, o curso de Medicina e Cirurgia da Universidade do Paraná (1912), posterior Faculdade de Medicina do Paraná, integraria essa rede institucional na medida em que passaria a formar os médicos daquele estado.

Por volta de setembro de 1918, algumas notícias começaram a ser veiculadas no Brasil sobre um “estranho mal” que circulava na Europa e contagiava soldados e médicos que participavam de campanhas militares durante a Primeira Guerra Mundial. O estranho mal passaria a ser divulgado como gripe espanhola ou influenza espanhola, cuja virulência era ainda incerta. A “gripe”, que não era originária do país que levava o nome, terminou por vitimar, em estimativas aproximadas, de 20 a 50 milhões de pessoas ao redor do mundo.

Em 28 de setembro de 1918, em um dos primeiros registros sobre a gripe espanhola no Paraná, o jornal A República reproduzia uma declaração fornecida pelo médico carioca Carlos Seidl, então chefe da Diretoria Geral de Saúde Pública, que, sem alarme, reagiu ao que se passava na Europa dizendo que se tratava de uma “epidemia de gripe” e aconselhava a população a “(...) evitar as infecções gastro-intestinaes e das vias respiratorias e tambem a vacinar-se contra a gripe epidêmica”. (A República, 28, Set., 1918). Aqui, Seidl referia-se ao meio profilático empregado pelo médico francês Jules Goldschmidt da Universidade de Toulouse. Em 1890, Goldschmidt observou que os enfermos de gripe, ao se vacinarem contra a varíola, poderiam desenvolver uma resposta imune à gripe, chamada de “epidêmica”. Tais declarações foram feitas cinco dias depois da notícia de que 55 médicos brasileiros de uma Missão Médica enviada ao continente europeu haviam se enfermado no porto de Dakar. A reprodução daquela informação na imprensa paranaense demonstra que, tanto ali, como no Rio de Janeiro e São Paulo, os meios de comunicação eram utilizados para pedir calma à população no início do surto.

O clima de incerteza, sobre a identidade do agente causador e a virulência da gripe, aumentou ainda em setembro de 1918, pois era crescente o número de vítimas; o que obrigou imprensa e meio médico-profissional a encararem o fato de que a espanhola havia chegado ao país.  Em outubro já eram milhares de internados no Rio de Janeiro. No começo daquele mês, um correspondente de outro jornal paranaense no Rio, o Diario da Tarde, relatava aumento de casos notificados igualmente na Bahia e Recife (Diario da Tarde, 3, Out., 1918). Na mesma semana, o serviço telegráfico do jornal A Republica foi temporariamente interrompido porque o seu correspondente havia se enfermado no Rio de Janeiro, e faleceria dias depois.

Foi no final do mês de outubro de 1918 que o Diario da Tarde relatou com maior gravidade as notícias sobre os contágios ocorridos no Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul. Ao mesmo tempo chamava a atenção do governo para que tomasse medidas que impedissem a chegada da gripe na capital curitibana. Na mesma edição, os redatores informaram que, em São Paulo, na localidade de Pinheiros, uma família inteira foi contagiada pela gripe por intermédio de um empregado dos correios que havia acabado de chegar enfermo do Rio de Janeiro (Diario da Tarde, 19, Out., 1918). Assim, atividades essenciais, como a dos correios e todas que representassem o sentido de mobilidade, passaram a ser vistas com desconfiança e meios de contágio potencial.

“En Coritiba há influenza hespanhola”, narrava a mesma edição do jornal citado acima. Argumentava que, por conta das comunicações diárias com São Paulo e Rio, era fora de dúvida a existência de casos na cidade de Curitiba. De fato, na capital do Paraná, registros históricos demonstram que os casos iniciais da doença foram encontrados em pessoas recém-chegadas do Rio de Janeiro, bem como em trabalhadores de uma agência bancária da cidade. Tanto era importante a questão da comunicação e mobilidade entre regiões que, dentre as primeiras medidas ordenadas pelo Diretor do Serviço Sanitário do Estado do Paraná, Dr. Trajano Joaquim dos Reis, estava justamente a desinfecção de trens, malas postais e bagagens de passageiros provenientes do norte do país, para logo em seguida estendê-las às casas de diversões, quarteis e escolas. O médico argumentava que os países estavam qualificando como “hespanhola” aquilo que era conhecido de longa data pela população curitibana como “influenza” ou “gripe, com um curso definido e medidas de cuidado habituais (A Republica, 21, Out., 1918). Este recuo ao passado foi alicerçado também pela divulgação nos jornais de uma tese, sobre influenza, que o próprio Trajano Reis defendeu no final do século XIX na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro: “Das principaes endemias e epidemias de Curityba (1898)” (A Republica, 22, Nov., 1918).

Em 1918, sob o clima de hesitação da imprensa e dos médicos quanto às medidas viáveis para evitar o contágio da gripe espanhola, algumas cidades estabeleceram medidas bastante rigorosas que os jornais classificaram como resultado do terror que a gripe espanhola suscitava. Moradores da cidade de Guaratuba, litoral do estado do Paraná “(...) alarmados com a noticia da influenza hespanhola, não querem receber correspondencia nem telegramas. Estabeleceram cordão sanitário Rio Sahi e Cayobá.” (Diario da Tarde, 19, Out., 1918).

Apesar da indeterminação sobre o ímpeto violento que a doença assumiria, o médico Trajano Reis dava conselhos à população paranaense na tentativa de impedir que a capital fosse invadida pela gripe. Os conselhos tinham duplo foco, coletivo e individual. Destacava-se: não se comunicar com os doentes; evitar aglomerações; isolar doentes de seus familiares; ferver a roupa dos doentes; vacinar-se contra a varíola (se não funcionasse, ao menos estaria vacinado, explicava o médico); desinfecção de casas e quintais com creolina; beber água filtrada e fervida; lavar boca e garganta com desinfetante antes das refeições; lavagem frequente das mãos; usar chá de eucalipto e sal de quinina. “O ladrão terá grandes dificuldades as nossas portas e se o fizer será perseguido em tempo.” (A Republica, 21, Out., 1918; 23, Out., 1918).

O agente não identificado da gripe, ao qual o médico Trajano Reis se referia metaforicamente como “ladrão”, poderia adentrar através de portas inimagináveis. Foi assim que, na última semana de outubro, foi decretado o fechamento de escolas primárias, proibição de missas noturnas e de romarias aos cemitérios, previstas para início de novembro. O paralelo com a anulação de ritos compartilhados durante a atual pandemia de coronavírus é notório.

Em novembro, a epidemia alcançou a capital paranaense. Em 20 de novembro de 1918, uma nota publicada no jornal A Republica informou que, por meio da Diretoria de Serviço Sanitário do Estado do Paraná, 43 ambulâncias haviam sido expedidas, tendo algumas localidades recebido 2, 3 e até 4 ambulâncias. A nota também informa que, na capital e diversos municípios do estado, prestavam serviço 28 estudantes de medicina e 110 médicos. Somava-se a eles o pessoal dos hospitais, sendo 40 empregados contratados. Os estudantes de medicina compunham a primeira turma da Faculdade de Medicina do Paraná, muitos dos quais se formariam em 1919. Apesar de relatar o contingente de recursos humanos empregado, em nenhum dos trechos da nota acima menciona-se o fornecimento de equipamentos ou instrumentos de proteção para os estudantes ou médicos que combatiam a epidemia.

Médicos reconhecidos por seus pares, alguns deles fundadores e mantenedores de instituições de ensino e assistência à saúde em Curitiba foram escalados para atuarem na linha de frente da epidemia. No período mais trágico da gripe, em que Curitiba e região metropolitana alcançaram a marca de 295 óbitos, o diretor da higiene Trajano Reis declarava que: “Nada se tem poupado. O serviço é fatigante para todos, que trabalham noite e dia exhaustivamente. A Repartição não se fecha. Ninguem goza de feriados. E se não fosse assim, maiores calamidades flagellariam a nossa população.” (A Republica, 20, Nov. 1918).

Para a execução dos referidos trabalhos, a Diretoria do Serviço Sanitário inaugurou postos de socorro aos enfermos de gripe na capital, e alguns serviços, inicialmente voltados para outro fim, acabaram sendo remanejados para a gripe. Foi o caso da Comissão de Profilaxia Rural no Paraná, chefiada pelo médico Heráclides Cesar de Souza Araújo, vinculado ao Instituto Oswaldo Cruz, e composta por médicos auxiliares da faculdade de medicina do Paraná. Criada para combater a lepra no estado, acabou intervindo contra verminoses e a gripe espanhola por meio de postos de socorro levantados nos municípios de Morretes, Antonina e também na capital.

No final de novembro daquele ano, Souza Araújo e Trajano Reis passaram a defender que a epidemia estava declinando em Curitiba, justificando tal posicionamento com a diminuição no número de notificações de novos enfermos. Ao contestarem as opiniões daqueles dois médicos, os redatores do Jornal da Tarde argumentaram que a maioria da população estava lançando mão de medicamentos homeopáticos na cura da gripe. O sucesso desses medicamentos seria “(...) devido ao facto de Coritiba estar verdadeiramente desfalcada de médicos.” E os poucos que ali atuavam “trabalham ao extremo nesta cidade, se achando já de todo exaustos.” (Jornal da Tarde, 21, Nov. 1918). Os que não haviam sido enviados para fora da cidade se achavam enfermos, diziam. Com base em tal argumento, faltavam médicos para receitar; o que abria espaço para o uso de recursos homeopáticos e fazia com que tais enfermos passassem por inexistentes já que ninguém os notificava. 

Os primeiros casos letais da gripe começaram a aparecer no dia 10 de novembro. No intervalo de uma semana a imprensa já estava alertando sobre a subnotificação de casos e a lacuna de médicos na capital, que poderia ser sentida ferozmente em localidades distantes. Se uma das orientações do serviço sanitário era a de que todos os clínicos fossem imediatamente informados sobre a notificação de qualquer suspeita de “gripe”, a ausência desses profissionais em alguns locais potencializou a subnotificação.

Se cotejarmos esses dados com a situação atual, o número de infectados pelo novo coronavírus pode estar sendo subestimado. Os casos no país poderiam estar até 6 vezes acima dos números oficiais, de acordo com um estudo do Laboratório de Inteligência em Saúde da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (USP). Outro fator foi que, desde o mês de maio de 2020, o número de mortes em casa passou a crescer no país, estando diretamente relacionado à falta de atendimento e de profissionais no sistema de saúde.

A fadiga, extenuação e cumprimento de várias horas seguidas de trabalho tem sido uma constante em relatos recentes de enfermeiros e médicos no atendimento de enfermos do novo coronavírus. Além disso, desde março de 2020, estudantes do último ano médico e residentes vem sendo deslocados para trabalhar em enfermarias de hospitais de referência em atendimento. Há mais de 100 anos atrás, denúncias de possíveis “excessos” ou “faltas” cometidas pelos órgãos responsáveis pela contratação de médicos era relativamente inviável, já que inexistiam conselhos, sindicatos e associações para receber tais denúncias, como ocorre atualmente. Por outro lado, os historiadores podem encontrar registros – ainda que esparsos – de adoecimento e morte de médicos durante a gripe espanhola a partir de colunas da imprensa, como as chamadas “Necrologia” (notícias sobre óbitos) e “Enfermos”.

Ainda em novembro de 1918, o Jornal da Tarde noticiava que, no município de Castro, próximo a Ponta Grossa, o médico ali nomeado havia sido contagiado, impossibilitando a continuação do trabalho. Na mesma edição informava também que, em Curitiba: “Continuam enfermos os clínicos desta capital srs. drs. João Candido Ferreira, Petit Carneiro, Rodolpho Pereira de Lemos, Hamylton Loyola e Claudio de Lemos, estando quase restabelecido o major medico dr. Olegario de Vasconcelos.” (Diário da Tarde, 20 e 21, Nov., 1918).

Dois daqueles médicos faleceram em decorrência da doença e enquanto atuavam nos postos de socorro no final de novembro e início de dezembro de 1918: Rodolpho Pereira de Lemos (66 anos à época), professor da faculdade de medicina na cadeira de Clínica Neurológica e Psiquiátrica e diretor do Hospício Nossa Senhora da Luz, que funcionava sob os auspícios da Santa Casa de Misericórdia. O destaque da imprensa foi que Pereira Lemos sofria de doença crônica não especificada, mas que foi agravada pela gripe. Seu filho, Cláudio Lemos (30 anos à época), também faleceu. Ele trabalhava no hospício e foi indicado para a cadeira de Clínica Neurológica e Psiquiátrica para o ano de 1919; o que acabou não ocorrendo por conta de seu falecimento em uma localidade do interior do estado não mencionada.

Ao visualizarmos o conjunto de médicos nas estatísticas de enfermos, duas conclusões são possíveis. Primeiro, que a epidemia ainda não estava declinando no final de novembro, como defendia o próprio diretor do serviço sanitário. Segundo, a ausência de profissionais nos postos de socorro da capital e regiões do interior do Paraná mobilizava a posição de órgãos de imprensa local sobre a subnotificação de casos.

O alastramento da doença em outros municípios, como em Tamandaré, região metropolitana de Curitiba, contrastava com as diretrizes da diretoria de serviço sanitário apontadas anteriormente. A atuação do médico Antonio Dormonde Martins naquele local – ora a cavalo, ora a carroça – não conseguia debelar o aumento de casos, que chegava a 423; o que, segundo os jornais, representava um número “fabuloso em vista de fazer poucos dias que foram verificados os primeiros casos.” (Diario da Tarde, 25, Nov., 1918). O elevado número de enfermos, a falta de recursos humanos em saúde e medicamentos reduzidos cooperaram para o aumento e gravidade dos casos, o jornal concluía.

No início de dezembro de 1918, com base em indícios de que a epidemia começava a declinar na capital do Paraná, foram fechados postos de socorro e voltaram a circular os bondes. Tal como ocorre atualmente com a Covi-19, a explosão de casos da gripe espanhola passou a ocorrer com força pelo interior do estado em dezembro, após a abertura da capital. Acadêmicos de medicina que haviam atuado em regiões que atingiram seus “picos” em novembro, como Paranaguá e Morretes, eram enviados para o interior do estado para debelar os novos casos. Com base em dados de pesquisadores, se olharmos apenas para a gripe espanhola, ela foi responsável por cerca de 26,6% do total das mortes daquele ano (1.465), o que representou quase 400 vidas perdidas num curto espaço de tempo, em uma população que contava com aproximadamente 73 mil habitantes. Lembro, no entanto, que esses eram os dados oficiais criticados pela imprensa.

Em Curitiba e região, entre aquelas vítimas fatais e os mais de 45 mil enfermos, a maioria era de trabalhadores de ferrovias, do comércio, das agências de telégrafos, pescadores e indigentes. É impossível equiparar estas cifras às baixas entre os médicos. Por outro lado, registros históricos demonstram que a falta de profissionais durante a epidemia de gripe espanhola foi um agravante significativo para o desfecho infeliz da passagem da gripe pelo estado do Paraná. Tal como ocorreu em São Paulo, a solidariedade com a população mais vulnerável ocorria por meio de doações de alimentos e medicamentos sob intervenção da Cruz Vermelha, de entidades filantrópicas e de particulares nas brechas deixadas pelo sistema sanitário ou conjuntamente com ele.

Assim, ao vitimar também médicos em 1918, tal evento epidêmico ilumina uma ampla perda familiar e profissional junto aos postos de atendimento à população e às instituições de ensino onde atuavam e lecionavam. Significou também uma perda para o associativismo médico ao qual estavam integrados; e outra perda para a área da produção científica no âmbito do periodismo médico. No caso dos médicos Antonio Rodolpho Pereira Lemos e Cláudio Lemos, perderam as especialidades da psiquiatria e neurologia no Paraná e, por extensão, no Brasil. As lacunas por eles deixadas na grade curricular do curso médico da faculdade de Medicina do Paraná só foram recompostas a partir de 1923, com a entrada de outros atores em cena.

Cada profissional de saúde é um repositório de um tempo enorme de formação e de inúmeras experiências no front do atendimento, os quais geram um acúmulo de conhecimentos – que demora para ser formado – pelo bem maior que produz: a saúde e a vida. Visualizar os efeitos do quadro de morbimortalidade das duas primeiras décadas do século XX no estado do Paraná é essencial para compreender a história da medicina naquele estado e o retrato da atuação das gerações seguintes de profissionais.

Os discursos de estabilização e declínio do atual coronavírus tem justificado a abertura e retorno de algumas atividades nas grandes metrópoles. Por outro lado, na esteira dessa abertura está o incremento de casos em pequenas localidades do interior do Brasil. Intensificado desde o final de junho, tal incremento colocará em alerta e poderá sobrecarregar ainda mais o atendimento hospitalar de regiões centrais do país que concentram unidades de terapia intensiva.

De maneira análoga, como já ressaltei, os discursos de declínio da gripe espanhola começaram a se intensificar no início de dezembro de 1918. Este também foi o momento em que os registros de casos em regiões afastadas de Curitiba, sobretudo no norte e centro-sul do estado, aumentaram significativamente, iluminando desigualdades geográficas no que tange ao acesso a recursos humanos e hospitalares para conter a epidemia.  

A brutalidade dos eventos epidêmicos e pandêmicos opera um corte temporal entre as experiências vividas, a transmissão de conhecimento e o incremento na rede de atendimento em que atuam os médicos e trabalhadores da saúde no passado histórico e no nosso presente. A gripe espanhola pode ser lembrada quanto aos seus paralelos com a atual pandemia do novo coronavírus na medida em que nos chame atenção para as condições de nosso sistema de saúde e para as formas por meio das quais as desigualdades entre regiões classificadas como “centro” e “interior” do Brasil foram historicamente constituídas.

*Renilson Beraldo, doutorando no Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da COC/Fiocruz

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