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26/06/2020

Fiocruz em dois tempos: nas pandemias da gripe espanhola e da Covid-19

Lorenna Ribeiro Zem El-Dine e Vanessa Pereira da Silva e Mello*


No âmbito das comemorações dos 120 anos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), temos nos debruçado sobre a sua história, e foi durante esse trabalho que os efeitos da pandemia da Covid-19 nos alcançaram, impondo o home-office. Neste contexto, a consulta em acervos históricos digitais tem nos permitido ver a importância da Fiocruz no combate a uma pandemia mais antiga, a da gripe espanhola, em 1918. Tem sido possível identificar a atuação dos pesquisadores do então Instituto Oswaldo Cruz, a partir da perspectiva dos jornais, perceber as controvérsias sobre a atuação da instituição e notar o papel da imprensa na divulgação de informações para a população e na legitimação da ciência.

A pandemia de gripe espanhola teve início no final da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Estima-se que ela contaminou mais de 500 milhões de pessoas e que provocou entre 20 e 40 milhões de mortes em todo o mundo. Esse número é superior às vítimas da própria guerra, que tirou a vida de aproximadamente 15 milhões de pessoas (Lamarão; Urbinati, 2015). Causada por um vírus de gripe, o H1N1, a origem geográfica da doença é desconhecida. Foi apelidada de “espanhola” porque grande parte das informações que se tinha na época sobre a doença era divulgada pela imprensa da Espanha. Como esse país se manteve neutro durante a Primeira Guerra Mundial, não houve censura às notícias relacionadas à epidemia, como ocorreu nos países envolvidos no conflito (Goulart, 2005: 102).

O primeiro caso da doença foi registrado no Texas, Estados Unidos, em março de 1918. Em abril, a doença chegou à Europa e se espalhou por todo o continente até agosto. A partir desse mês, a segunda onda da gripe, considerada mais virulenta do que a primeira, alcançou a Índia, o Japão, a China, o continente africano e as Américas Central e do Sul. Já a terceira onda da doença ocorreu entre fevereiro e maio de 1919 (Lamarão; Urbinati, 2015).

No Brasil, as primeiras notícias sobre a pandemia foram veiculadas entre agosto e setembro de 1918 e recebidas com despreocupação, pois acreditava-se que a doença não alcançaria o país devido à distância da Europa. Por várias semanas, os jornais a nomearam como uma gripe comum e benigna. Entretanto, no início de setembro, brasileiros que participavam das missões médico-militares enviadas pelo Brasil, para apoiar os países Aliados no patrulhamento do Atlântico Sul, contraíram a doença em Serra Leoa e em Dacar. Nesse mesmo mês, a gripe espanhola chegou às terras brasileiras, trazida pelo navio inglês Demerara que passou pelos portos de Recife, Salvador e Rio de Janeiro (Souza, 2005: 72).

Com a doença se disseminando rapidamente e provocando as primeiras mortes na capital federal, os jornais começaram a abordar os efeitos econômicos e sociais da doença e a cobrar, das autoridades de saúde pública e do governo, ações para conter a epidemia e mitigar o sofrimento da população. Diversos serviços paralisaram ou passaram a funcionar precariamente por falta de pessoal, houve crise de abastecimento na cidade, aumento repentino do custo de vida e falta de leitos hospitalares para os doentes. Calcula-se que apenas no Rio de Janeiro a doença provocou 12.700 óbitos, cerca de ⅓ dos 35 mil óbitos registrados em todo o país (Lamarão; Urbinati, 2015).

Quando a gripe espanhola atingiu o Brasil, o Instituto Oswaldo Cruz, com apenas 18 anos de atividade, já havia alcançado reconhecimento dentro e fora do país, por sua atuação no combate às epidemias de peste bubônica, varíola e febre amarela, no Rio de Janeiro. O seu desenho original foi o de um laboratório criado, em 1900, com o nome de Instituto Soroterápico Federal, para produzir o soro e a vacina contra a peste bubônica. Porém, ainda nos primeiros anos de sua existência, sob a direção de Oswaldo Cruz, a instituição assumiu novas atribuições, articulando as atividades de pesquisa, ensino e a produção de soros, vacinas e outros produtos biológicos (Benchimol, 1990).

Como outras instituições públicas e privadas na cidade do Rio de Janeiro, o Instituto Oswaldo Cruz foi surpreendido pela gravidade da pandemia de gripe espanhola. Por esse motivo, precisou adiar atividades como a inauguração do seu hospital (que daria origem ao atual Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas - INI), prevista para o dia 20 de outubro, no encerramento do Congresso Médico que ocorria na cidade (Correio da Manhã, p. 1, 19 out. 1918).  Do mesmo modo que grande parte da população do Rio de Janeiro, funcionários e estudantes da instituição foram atingidos pela gripe, dentre eles, o médico paraibano Sylvio Bezerra Montenegro, que atuou no hospital de Deodoro (A Província, 4 nov. 1918).

Durante a pandemia de gripe espanhola, a imprensa reiterou a capacidade do Instituto Oswaldo Cruz de responder a crises sanitárias. As novidades obtidas pela instituição em relação à influenza foram divulgadas nos periódicos do Rio Janeiro e de capitais dos estados brasileiros. Foi o que aconteceu com as tentativas de Arthur Neiva de “isolar o micróbio da influenza espanhola” utilizando as “culturas das bactérias” cedidas pelo “médico português dr. Carlos França” (Diário de Pernambuco, 29 set. 1918, p. 1). Ou, ainda, com as investigações realizadas por Henrique de Aragão, que apontavam um vírus não filtrável como o causador da gripe espanhola. Os trabalhos desse pesquisador foram publicados no periódico especializado Brasil-Médico e nos de ampla circulação A Noite (RJ), A República (PR), Estado do Pará. Na década de 1910, apesar de bom conhecimento sobre os sintomas, vários aspectos da gripe eram desconhecidos da medicina, como tratamentos e meios de prevenção. A comunidade médico-científica da época também desconhecia o agente causador da doença: discutia-se na ocasião se era causada por um bacilo ou um vírus. Apenas na década de 1930, descobriu-se definitivamente que a doença é causada por um vírus.

No auge da crise sanitária provocada pela gripe espanhola, no Rio de Janeiro, os pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz com formação médica também foram convocados para trabalhar nos hospitais provisórios instalados na cidade do Rio de Janeiro (A Noite, 19 out. 1918, p. 3). Essa convocação aconteceu após a demissão do médico Carlos Seidl, que dirigia a Diretoria Geral de Saúde Pública (DGSP), órgão responsável pela gestão dos serviços de saúde na capital Federal. Enquanto Teófilo Torres, também médico e funcionário daquele setor, foi nomeado para a direção desse órgão, Carlos Chagas, que assumira o Instituto de Manguinhos depois da morte de Oswaldo Cruz, em 1917, recebeu a coordenação geral dos hospitais provisórios da capital Federal (Azevedo, 1995 e 1997; Goulart, 2005; Schatzmayr, Cabral, 2012).

A transferência temporária de Carlos Chagas para a Diretoria Geral de Saúde Pública foi elogiada em vários periódicos. Anos antes de ocupar a direção do Instituto Oswaldo Cruz, Chagas havia ganhado destaque na imprensa pela descoberta da denominada “doença de Chagas”, em 1909. O cientista havia sido homenageado pelo Instituto de Doenças Tropicais de Hamburgo com o prêmio Schaudinn, em 1912, e chegou a ser indicado duas vezes para o Nobel de Medicina (Kropf, 2009). No entanto, a fama alcançada por Chagas e por outros pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz, serviu, também, de argumento para os críticos do presidente Venceslau Brás.

O texto “Macacos fora do galho”, publicado pelo periódico O Paiz, aponta que o protagonismo assumido pelos cientistas de Manguinhos no atendimento clínico aos doentes de gripe espanhola desagradou alguns médicos. De acordo com a nota, Venceslau Brás cometera um equívoco ao deslocar os funcionários do Instituto Oswaldo Cruz para outra atividade, no momento em que deveriam se dedicar aos estudos sobre a “moléstia reinante” e à produção de medicamentos (O Paiz, 27 out. 1918, p.3). Ante a polêmica, em entrevista ao periódico A Noite, Carlos Chagas defendeu a atuação dos pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz no socorro à população do Rio de Janeiro, negou que as atividades em Manguinhos estivessem paralisadas e rechaçou o que considerava ser a transformação da instituição numa drogaria (A Noite, 27 out. 1918, p. 1). O jornal Correio da Manhã endossou essas declarações de Chagas, esclarecendo que a produção das “ampolas medicamentosas” não era uma especialidade do Instituto Oswaldo Cruz, mas do Instituto Butantã, em São Paulo, que possuía as instalações adequadas para a produção da “quantidade necessária”. Desse modo não seria necessário, que Manguinhos, “de um momento para outro”, tivesse que “improvisar novos laboratórios” (Correio da Manhã, 29 out. 1918, p. 2). 

Na Diretoria Geral de Saúde Pública, Carlos Chagas ficou responsável pela administração do hospital geral, localizado na Escola Deodoro, no bairro da Glória. Os primeiros “postos hospitalares” subordinados a esse hospital foram criados nos bairros de Ramos, Engenho de Dentro, Meyer e Deodoro (O Paiz, 23 out. p. 3). Poucos dias depois, foram organizadas enfermarias semelhantes em Bangu, Piedade, Campo Grande, Engenho Velho e Rio Comprido (A Noite, 30 out. p. 1). Ao todo foram implantados 27 destes postos de atendimento à população na capital Federal (Lamarão; Urbinati, 2015). Figueiredo de Vasconcelos, um dos pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz, passou a coordenar a distribuição de medicamentos aos postos de socorros, realizada pela seção de farmácia da DGSP (Correio da Manhã, 25 out. p. 3). Além de receberem os doentes mais graves de gripe espanhola, as equipes médicas desses hospitais provisórios organizavam a assistência nos domicílios. 

No Instituto Oswaldo Cruz, os pesquisadores Alcides de Godoy, Astrogildo Machado, Magarinos Torres e Olympio da Fonseca, dirigidos por Bowman C. Crowell, patologista norte-americano contratado pelo Instituto, seguiam com os estudos para detectar o “germe” causador da gripe. O material de pesquisa era coletado dos doentes no hospital da Escola Deodoro e por meio de autópsias realizadas em vítimas da influenza. Em começos de dezembro de 1918, a equipe contabilizava cerca de quarenta procedimentos desse tipo, segundo um periódico mineiro (O Pharol, 6 dez. p. 1). Nesse mesmo sentido, as investigações realizadas por Aristides Marques da Cunha, Otávio Magalhães e Olympio da Fonseca na sede do Instituto Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, e em Belo Horizonte, buscaram identificar o causador da doença e produzi-la “experimentalmente, em animais de laboratório” (Brasil-Médico, 30 nov. 1918, p. 3-4). Por meio de investigações como essas, o apelidado Instituto de Manguinhos, nome do bairro onde foi instalada originalmente a instituíção, se juntava aos esforços dos cientistas em diversos os países, para conter a pandemia de influenza.

Hoje, 102 anos depois da pandemia de gripe espanhola, instituições científicas em todo o mundo procuram respostas para enfrentar a pandemia de Covid-19. Num contexto científico e tecnológico muito diferente do que tínhamos em 1918, a Fundação Oswaldo Cruz, em 2020, é protagonista na coordenação das ações para o enfrentamento da pandemia do novo coronavírus. A instituição foi escolhida pela Organização Mundial da Saúde (OMS), como laboratório de referência para a Covid-19 nas Américas, com a função de apoiar os laboratórios da região e de realizar o sequenciamento genético de amostras do Sars-CoV-2 em circulação no Brasil, reunindo informações importantes para o desenvolvimento de testes de diagnóstico, de vacinas e de tratamentos para a Covid-19 (Menezes, 14 abr. 2020).

A Fiocruz também vem coordenando, no Brasil, o ensaio clínico Solidarity (Solidariedade) da OMS, que conjuga os esforços de instituições científicas em diversos países para encontrar medicamentos eficazes no tratamento dessa doença (Fiocruz... 27 mar. 2020). Além disso, o Centro Hospitalar de Covid-19, do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI/Fiocruz), inaugurado no último dia 19 de maio, contribuirá para o estabelecimento dos protocolos clínicos da doença e ampliará a capacidade de atendimentos do Sistema Único de Saúde, no estado do Rio de Janeiro (Câmera; Fuchs, 19 mai. 2020).

Não apenas o contexto científico de hoje é muito diferente, como também as tecnologias e dinâmicas de circulação de informações. Ao mesmo tempo em que as novas tecnologias e as redes sociais facilitam a disseminação da informação, elas também criam um desafio paralelo ao combate da pandemia: a infodemia. Se os meios de comunicação têm tido, como em 1918, um papel fundamental no esclarecimento da população e no debate público sobre as melhores políticas a serem adotadas, recentemente, lidamos com a enorme quantidade de fontes de informações disponíveis, a propagação de notícias falsas sobre a Covid-19 e o negacionismo da ciência. 

Para que os conhecimentos científicos orientem as políticas públicas necessárias ao enfrentamento da pandemia do novo coronavírus, os pesquisadores da Fiocruz, de diferentes áreas, têm tido papel atuante nos veículos de comunicação, concedendo entrevistas, publicando artigos em jornais e participando de lives. Através do sistema MonitoraCovid-19, o Instituto de Comunicação e Informação em Saúde (Icict/Fiocruz) trabalha na sistematização de dados científicos e no desenvolvimento de ferramentas para o monitoramento da Covid-19 nos estados e municípios brasileiros e em outros países (Fiocruz… 08 abr. 2020). A instituição tem divulgado informações para a população brasileira sobre essa doença tanto pelos seus canais de comunicação quanto pela imprensa.

Por meio dessas e de outras ações, em meio a pandemia de Covid-19, a Fiocruz reitera a sua capacidade de oferecer respostas à sociedade brasileira em contextos de epidemias (Tatsch, 25 mai. 2020) e a sua importância no cenário científico e da saúde pública no Brasil e no mundo.  O protagonismo da instituição no combate às pandemias de gripe espanhola e Covid-19 também evidencia o valor da ciência e a necessidade de o país fortalecer as instituições científicas nacionais e o Sistema Único de Saúde (SUS), para que possa estar preparado para enfrentar epidemias futuras.

*Lorenna Ribeiro Zem El-Dine e Vanessa Pereira da Silva e Mello são doutoras pelo Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde (PPGHCS) da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) e bolsistas recém-doutoras no Departamento de Pesquisa em História das Ciências e da Saúde (Depes-COC), em projeto sobre os 120 anos da Fiocruz

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