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10/05/2007

Tratamento para transexuais não se aplica a travestis, diz conselheiro do CFM

Fernanda Marques


Membro do Conselho Federal de Medicina (CFM), ex-presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria e professor aposentado da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, o médico Luiz Salvador é a favor de se ampliar o acesso à cirurgia de transgenitalização, tornando-a disponível, inclusive, no Sistema Único de Saúde (SUS). Contudo, Salvador destaca que, segundo norma do CFM, esse é um procedimento dirigido a transexuais, e não a travestis. Na opinião do médico, a transformação corporal de travestis deve ser vista com cautela – na medida em que eles não têm um antagonismo tão profundo entre mente e corpo, pode haver arrependimento depois.


O que é transexualismo/transexualidade, na definição adotada pelo CFM?


Salvador: O CFM adota a mesma definição da Organização Mundial de Saúde (OMS). A transexualidade está na classificação internacional de doenças e é um transtorno de identidade psicossexual. O indivíduo não só deseja pertencer ao outro sexo como existe uma incoerência profunda entre mente e corpo. A identidade do transexual é diferente de seu sexo. No caso do travesti, ele deseja ser diferente, mas a contradição entre mente e corpo não é tão acentuada. Portanto, transexualismo é um quadro totalmente distinto de travestismo. Na teoria das contradições, tão cara aos dialéticos, a contradição antagônica é a mais extrema das contradições. Aí, antagonismo pouco acentuado se revela um dislate a ser evitado.


Quais são os critérios para que um indivíduo seja considerado transexual? O desejo de mudar a genitália é condição necessária para que um indivíduo seja considerado transexual? Um homem que deseja apenas colocar próteses nas mamas e tomar hormônios sexuais femininos, sem se submeter à mudança da genitália, não é considerado transexual, pela classificação oficial?


Salvador: O transexual rejeita tudo o que diz respeito ao seu sexo, o que inclui uma aversão pelo órgão genital. Os casos descritos na literatura científica, assim como a minha experiência profissional, mostram que todo transexual deseja uma mudança corporal o mais completa possível para se adequar ao gênero com o qual ele se identifica. Quando o indivíduo demonstra não desejar uma mudança completa, provavelmente, ele não é transexual, mas sim travesti. Do ponto de vista médico, para um transexual, a mudança corporal completa significa se adequar a sua identidade. Para um travesti, essa mudança é uma mutilação irreversível. Alguns travestis se submetem à cirurgia de transgenitalização no exterior e depois, sobretudo quando chegam à meia-idade, se arrependem, só que então é tarde demais, porque a operação é irreversível.


Hoje, no Brasil, quem pode ter acesso à terapia para “mudança de sexo”? Um indivíduo que não quer fazer a mudança da genitália, mas deseja outras transformações corporais menos radicais, pode se submeter aos procedimentos no sistema oficial de saúde do Brasil?


Salvador: Em primeiro lugar, não faz sentido falar em terapia para “mudança de sexo”, porque o sexo em si – que diz respeito a aspectos da reprodução – não pode mudar. A terapia disponível para os transexuais, mas não para os travestis, segundo norma do CFM, transforma o corpo para que ele adquira a aparência do sexo com o qual a pessoa se identifica radicalmente, no sentido exato desta expressão, que provém de raiz. Os candidatos à cirurgia de transgenitalização devem ser acompanhados por uma equipe multiprofissional durante, pelo menos, dois anos, porque o diagnóstico diferencial de transexualismo e travestismo pode ser difícil. Se um travesti deseja colocar próteses de silicone, isso não é contemplado pela norma do CFM. Na minha opinião, se ele quiser, ele vai colocar, mas não vejo necessidade, e ele ou ela pode se arrepender e retirar o artifício sem prejuízo maior. Mas isso não vale só para o travesti: vale para qualquer pessoa que se arrisca em uma cirurgia plástica puramente estética, diferente – é claro – de uma cirurgia plástica reparadora. Só que os procedimentos não necessários não são realizados pelo sistema público de saúde. É o mesmo caso da terapia com hormônios: acho difícil que um travesti tenha acesso a ela, na medida em que é cara e muita gente que realmente precisa não consegue fazê-la e os danos ao organismo são muito mais expressivos.


Na sua opinião, quando o assunto é a saúde do grupo dos transexuais, nos últimos anos, quais foram as principais conquistas e quais dificuldades persistem?


Salvador: Está ocorrendo uma melhora progressiva. Se a situação não é melhor, é porque o sistema público de saúde como um todo tem carências, e esses problemas não afetam só os transexuais, mas toda a população.


Existem problemas de acesso aos serviços de saúde para o grupo dos transexuais? Por quê? Em termos de políticas públicas de saúde, o que pode ser feito para melhorar e ampliar esse acesso?


Salvador: A tendência é que o acesso fique cada vez mais fácil. No entanto, ainda falta uma decisão política que sinalize a necessidade de se capacitar mais equipes para o atendimento aos transexuais no sistema público de saúde. Atualmente, ainda são poucas as equipes – somente em alguns poucos hospitais universitários. Acredito que deveria haver equipes especializadas também no Sistema Único de Saúde (SUS). Não importa que os transexuais sejam uma minoria: todo cidadão tem que receber o tratamento de que necessita.


O CFM tem informações sobre transexuais que se submetem a procedimentos de transformação corporal realizados por médicos clandestinamente? Quais as conseqüências dessas práticas em termos de saúde e sociais? Qual a punição prevista para esses médicos?


Salvador: Qualquer cirurgião credenciado pelo Conselho Regional de Medicina como médico, em tese, pode fazer os procedimentos. Agora, se algum profissional não obedecer à norma do CFM e, por exemplo, fizer a cirurgia em um indivíduo sem o diagnóstico diferencial de transexualismo, esse médico certamente será punido – as punições variam de caso para caso.


O que o CFM vem fazendo para promover a inclusão dos transexuais e diminuir o preconceito?


Salvador: Nas duas últimas gerações, como ocorreu com a população instruída de forma geral, a consciência dos médicos a respeito do tema transexualismo melhorou muito. Antes, abordar a necessidade de se oferecer no hospital a cirurgia de transgenitalização seria motivo de apedrejamento. Hoje, os médicos encaram o tema de uma forma bem mais natural.

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