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07/12/2015

'Tuberculose e aids formam um casamento perverso', diz Margareth Dalcolmo

Informe Ensp (Ensp/Fiocruz)


Em relatório divulgado no final de outubro de 2015, a Organização Mundial da Saúde (OMS) informou que a tuberculose superou a aids como doença infecciosa mais mortal do mundo em 2014. Ainda que a taxa de mortalidade represente quase a metade daquela verificada em 1990, as estimativas apontam que a doença matou 1,5 milhão de pessoas no ano passado, contra 1,2 milhão de vítimas do HIV.

Classificadas por especialistas como doenças que formam um “casamento perverso”, o fato é que, no mundo, foram relatados 9,6 milhões de novos casos de TB em 2014. A doença respondeu pelas mortes de 890 mil homens, 480 mil mulheres e 140 mil crianças. Dos 1,5 milhão de pessoas mortas por TB em 2014, 400 mil eram HIV-positivos, segundo a OMS.

Para entender esse quadro e os demais fatores associados à elevada incidência e ao grande número de óbitos, o Informe da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) entrevistou a pesquisadora do Centro de Referência Professor Hélio Fraga e consultora da Organização Mundial da Saúde para novos medicamentos, Margareth Dalcolmo. Entre algumas certezas, o fato que o governo brasileiro vem se esforçando na ampliação da cobertura e na aquisição do método rápido molecular para diagnostico. Mas ainda há muito o que fazer, principalmente no que tange populações vulneráveis como os indígenas e a população carcerária.

Informe Ensp: De acordo com o relatório da OMS, emitido no final de outubro deste ano, a tuberculose superou a aids como doença infecciosa mais mortal do planeta em 2014. O que, de fato, explica esse dado?

Margareth Dalcolmo: A tuberculose ainda se apresenta, a cada ano, com mais de 9 milhões de casos e com um número de mortes que chega perto de 2 milhões de pessoas - o que é injustificável. A analogia à Aids se justifica porque a TB é uma doença infecciosa diretamente relacionada à infecção pelo vírus HIV. Desde sempre. Não só por ser a mais prevalente, mas por se tratar de condições que debilitam o indivíduo, que são ligadas à imunidade celular. Essa situação nos permite afirmar que tuberculose e Aids formam um casamento perverso.

E isso acontece em todo mundo, inclusive no Brasil, cuja mortalidade por tuberculose chega a 4,5 mil óbitos por ano. E quase 50% desses óbitos por TB são em pacientes com HIV/Aids. Esse elevado número está relacionado não só às condições próprio paciente, mas a circunstâncias de acesso, regularidade e tratamento adequado. Há se de se perguntar: por que uma doença benigna, tratável, com medicamento de boa qualidade, gratuito e fornecido pelo SUS (na condição brasileira) como a tuberculose mata tantos pacientes no país? Várias razões, que podemos discutir depois, respondem a essa pergunta. Portanto, esse fato é explicável, mas não é justificável pelo grande número de mortes.

Informe Ensp: A tuberculose ainda é extremamente ligada à pobreza? Essa ligação explicaria o grande número de mortes, ou a doença vem modificando seu panorama social?

Margareth Dalcolmo: A tuberculose continua sendo uma doença associada à exclusão social. Ela é notadamente ligada a condições de vida e saneamento, além da própria natureza imunológica do hospedeiro.

Hoje, quando afirmamos que a tuberculose mudou de padrão, é porque ela se complexificou. A doença está ligada a determinadas condições de comorbidade que colocam não só a Aids como fator prevalente e de risco, mas também outras condições existentes na população geral como o diabetes (concorre com a Aids como a comorbidade mais frequentemente ligada à TB), por exemplo.

Em números, isso quer dizer que aproximadamente 12% dos casos de pacientes com tuberculose são diabéticos (proporção pouco acima do HIV). Em outras palavras, podemos dizer também que o fato de ser diabético é uma condição predisponente de risco para adquirir tuberculose. Há outras condições ainda como uso de drogas ilícitas e tabagismo.

Informe Ensp: A senhora citou alguns fatores de comorbidade, mas cidades como o Rio de Janeiro, por exemplo, apresentam alta incidência histórica da doença. O que coloca a cidade nesse patamar?

Margareth Dalcolmo: A cidade do Rio de Janeiro apresenta uma tendência histórica, secular. A chegada da doença no Brasil, no século XVI, foi pelo porto da cidade. Além disso, a distribuição geográfica do Rio (do ponto de vista urbano, o Rio está numa faixa de terra entre a montanha e o mar, onde pobreza e riqueza sempre foram muito próximos) favorece a transmissão.

A cidade sempre teve condições de saneamento e moradia desfavoráveis, com grande confinamento de pessoas. Essa situação cria um perfil historicamente não só de tendência, mas de alta mortalidade também. A isso, soma-se a ineficiência do serviço de saúde das últimas décadas.

Depois, há uma outra condição, não específica só do Rio de Janeiro, que ajuda a explicar a situação: os chamados grupos vulneráveis. As populações indígenas, onde a incidência é muito alta, e a população carcerária, cuja incidência é a mais alta de todas, apontam um grave problema. Se você imaginar que nossa incidência média é de 38 por 100 mil casos no Brasil, e 70 casos por 100 mil no Rio de Janeiro, no ambiente carcerário é de 2000 casos por 100 mil habitantes. As pessoas presas no Brasil encontram-se em condições absolutamente sub-humanas.

Informe Ensp: Por que a tuberculose ainda mata tanto?

Margareth Dalcolmo: Essa é uma pergunta que constrange a todos, pois falamos de uma doença facilmente diagnosticada. O país, inclusive, deu um grande passo na compra e adoção, pelo Ministério da Saúde, do método rápido molecular para diagnostico. Então, houve uma mudança de paradigma no diagnóstico de tuberculose. O Brasil tem uma cobertura de cerca de 60% dos casos e o Rio de Janeiro está bem coberto, com 14 equipamentos lotados na cidade. Na prática, isso quer dizer que uma pessoa assintomática respiratória pode procurar uma unidade de saúde e coletar o material que o resultado estará nas mãos do médico de 48 a 72 horas, através de um sistema online que se chama GAL (Sistema Gerenciador de Ambiente Laboratorial). O médico, portanto, estará autorizado a iniciar imediatamente o tratamento do paciente. Isso reduz a peregrinação daquele paciente pelos serviços de saúde.

Por outro lado, o que é injustificável e iníquo são as condições de deterioração da rede pública hospitalar. Hoje você não consegue internar um paciente por tuberculose. Ainda que o SUS preveja na sua tabela o pagamento da internação desse paciente, isso não é feito. Os hospitais se valem de justificativas que, na nossa opinião, não tem razão. Esses pacientes têm muita dificuldade, seja por razões de complexidade clínica, ou por razões estritamente sociais, ele tem que ser internado. Não há como tratar um morador de rua, em estado grave, na rua. Temos que interná-lo porque mesmo que uma equipe de saúde que vá até esse indivíduo, ele nem sempre estará no mesmo local. Para trata-lo adequadamente é interromper a cadeira de transmissão e dar condições dignas de tratamento.

Informe Ensp: Como a Fiocruz vem atuando no enfrentamento da doença?

Margareth Dalcolmo: O Centro de Referência Professor Hélio Fraga e o Instituto Nacional de Infectologia (INI) são dois polos de referência para tratamento de casos resistentes. São centros que têm investido muito no desenvolvimento e participação de protocolos internacionais de pesquisa. Começaremos em 2016 o ensaio clinico mais importante hoje para tratamento da tuberculose resistente e sensível, que é um estudo financiado pela Global Aliance, o Stand.

Ele será desenvolvido em cinco sites no Brasil: três na Fiocruz, um no Espírito Santo e outro em Porto Alegre. Esse estudo testará a redução do tempo de tratamento e a Fiocruz lutou muito para trazê-lo.

Além disso, a Fundação vem exercendo o importante papel de participar dos ensaios clínicos e tem investido na qualificação dos seus laboratórios de referência. O Laboratório do INI é qualificado para desenvolvimento de ensaios clínicos e o do CRPHF está igualmente qualificado para exames de referência, além de receber exames da rede do Rio de Janeiro para desenvolvimento. É o único laboratório que faz testes de sensibilidade para fármacos de segunda linha. A Fiocruz participa junto ao Programa Nacional de Controle de Tuberculose, ao Ministério da Saúde e demais organismos internacionais, além de capacitar diversos profissionais.

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