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13/10/2007

Uma voz brasileira no debate sobre mudanças climáticas e saúde

Catarina Chagas e Fernanda Marques


O médico e pesquisador Ulisses Confalonieri disse nesta segunda-feira (15/10) que o Prêmio Nobel da Paz de 2007, concedido ao ex-vice-presidente dos Estados Unidos Al Gore e ao Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), "dá credibilidade universal aos resultados do relatório, calando os chamados 'céticos', bem como os lobistas detratores, e estimula mais pesquisas sobre o tema, não só pela adesão de novos pesquisadores, como também pelo aporte de mais financiamento para os grupos que já existem". Ulisses, que trabalha na Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp) da Fiocruz e está há dez anos no IPCC, é coordenador de um dos capítulos do Painel. Quem ocupa a função decide, em última instância, sobre o conteúdo e as conclusões dos capítulos. Cada grupo de trabalho tem entre 15 e 20 capítulos técnicos e o de Ulisses faz parte do Grupo 2 (Impactos, Adaptação e Vulnerabilidade). Entre os três mil cientistas de todo o mundo que participam do IPPC estão outros 12 brasileiros.


Na entrevista abaixo, concedida por Ulisses em julho, ele explica e detalha a relação entre saúde e mudanças climáticas e comenta o debate internacional sobre o assunto. O pesquisador também aborda a primeira iniciativa no sentido de quantificar as relações entre mudanças climáticas, doenças e indicadores socioeconômicos, o Índice de Vulnerabilidade Geral (IVG), que foi fruto de um trabalho dirigido por ele, e a atuação do IPPC, no qual atua como co-coordenador do Comitê de Saúde do Grupo de Trabalho 2.


 Confalonieri: até os países ricos estão despreparados para as mudanças (Foto: Ana Claudia Câmara)

Confalonieri: até os países ricos estão despreparados para as mudanças (Foto: Ana Claudia Câmara)


O relatório do Grupo 2 confirma que um dos continentes mais vulneráveis é a África, onde, em 2020, até 250 milhões de pessoas estarão expostas a problemas relacionados à água. De acordo com o documento, as mudanças climáticas atingem todo o planeta, inclusive Europa e América do Norte. Na América Latina, o aumento da temperatura e a escassez de água no solo causariam, dentro de meio século, a substituição gradual da floresta tropical por savana na Amazônia oriental, acarretando uma significativa perda da biodiversidade. O Grupo 2 afirma que as mudanças climáticas podem afetar a saúde de milhões de pessoas. Os impactos incluiriam o aumento da desnutrição; o crescimento do número de mortes devido a ondas de calor, enchentes, tempestades, incêndios e secas; um ônus maior associado à diarréia; a freqüência aumentada de problemas cardio-respiratórios; e a distribuição espacial alterada dos vetores de algumas doenças infecciosas.


Nas zonas temperadas, as mudanças climáticas podem trazer certas vantagens, como a redução das mortes associadas à exposição ao frio. Contudo, esses benefícios vão ser superados pelos efeitos negativos do aumento da temperatura em todo o mundo, especialmente nos países em desenvolvimento. "O balanço dos impactos positivos e negativos na saúde vai variar de um lugar para outro, e vai mudar ao longo do tempo, conforme a temperatura continuar a subir", diz o relatório, destacando também a importância de fatores que moldam a saúde das populações, como educação, assistência médica e desenvolvimento econômico. Em entrevista, Confalonieri fala sobre desdobramentos do IVG e como anda a discussão internacional sobre mudanças climáticas e saúde.


Em uma perspectiva histórica, é possível correlacionar as mudanças ocorridas no clima do planeta ao longo dos anos com o avanço ou o recrudescimento de doenças?

Confalonieri:
Ainda não existem evidências sólidas, apenas indícios, mas o que vem sendo discutido e aceito é que as mudanças climáticas podem afetar a saúde em quatro áreas. A primeira diz respeito às doenças transmissíveis endêmicas, como malária e dengue, porque as mudanças climáticas interferem no ciclo dos insetos vetores, entre muitos outros fatores. A segunda se refere aos problemas nutricionais. Um clima muito seco, por exemplo, diminui a produção de alimentos, o que constitui um problema, principalmente, nas áreas mais pobres, onde as famílias praticam agricultura de subsistência. A terceira área inclui os traumas e acidentes associados a eventos extremos, como tempestades, nevascas, furacões e inundações. Nesses casos, além das mortes e seqüelas físicas, há que se considerar a perda de patrimônio e os distúrbios psicológicos decorrentes, como o estresse pós-traumático. A quarta área está relacionada a uma atmosfera alterada, com exacerbada formação de poluentes e aumento dos efeitos da poluição no organismo, sobretudo doenças respiratórias e cardiovasculares. Por fim, outra questão a ser considerada é o deslocamento de populações, processo intensificado, por exemplo, devido a uma seca extrema. São os refugiados ambientais, que, assim como os refugiados de guerra, ficariam no seio de conflitos culturais, sociais e econômicos, além de sobrecarregarem a demanda por serviços de saúde e assistência social.


Onde os efeitos das mudanças climáticas sobre a saúde pública já são visíveis?

Confalonieri:
Alguns fatos são de domínio público, como as ondas de calor na Europa, em 2003, que mataram 30 mil pessoas. Ainda não se comprovou se esse evento foi efeito das mudanças climáticas globais. Se ficar comprovado, será a primeira evidência inequívoca. Os acontecimentos serviram para mostrar que até os países mais desenvolvidos estão despreparados para os impactos, especialmente a França, onde houve mais vítimas. E o relatório do Grupo de Trabalho I do IPCC diz que essas ondas devem se tornar mais fortes e mais freqüentes (ver box).


E no Brasil? Quais regiões estão sendo mais afetadas pelas mudanças climáticas? Por quê?

Confalonieri:
O Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC) concluiu uma pesquisa, coordenada pelo Dr. José Marengo, que apresentou cenários de mudança climática para o Brasil. Um dos resultados mostra a diminuição de chuva no Norte e Nordeste. No Norte, isso faria a floresta perder parte de sua extensão. No Nordeste, onde já existe uma extensa área de semi-árido, a sobrevivência se tornaria difícil, com um aumento da aridez. Assim, ou seriam feitas muitas obras de engenharia ou a população teria que migrar, intensificando um processo que já existe. Mas os grandes aglomerados urbanos também são vulneráveis a mudanças climáticas. O Rio de Janeiro, por exemplo, tem muitas áreas de invasão, favelas nas encostas de morros. Toda a população que vive nessas áreas está vulnerável a um evento extremo, como uma chuva torrencial e os conseqüentes deslizamentos de terra. Recentemente, chuvas fortes seguidas de inundações atingiram as regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste.


De acordo com o IVG, o Rio Grande do Sul é o estado menos vulnerável e Alagoas, o mais vulnerável. Quais as razões?

Confalonieri:
O índice de Alagoas pode ser explicado pela situação do Nordeste, comentada na resposta anterior. Mas vale destacar que o peso maior do IVG está nos dados socioeconômicos e de doenças sensíveis ao clima. Desse modo, o Rio Grande do Sul é menos vulnerável porque apresenta bons indicadores socioeconômicos e os casos de doenças endêmicas sensíveis ao clima são escassos, esporádicos ou importados. No IVG, usamos dados de séries históricas. Planejamos, agora, realizar um estudo prospectivo, com dados de cenários, em um exercício de projeção para daqui a cinco, dez ou 20 anos, o que permitiria um planejamento de ações de longo prazo.


O IVG foi criado a partir de uma demanda do MCT, mas ele poderia ser aplicado a outros lugares do mundo?

Confalonieri:
Há dez anos participo de discussões sobre mudanças climáticas. Já tive acesso a muitos documentos de diversos países e, em sua maioria, os que tratam de vulnerabilidade e de impactos na saúde falam de generalidades ou trazem simplesmente a opinião de especialistas. Não se apresenta uma quantificação do problema, pelo menos não do modo como fizemos com o IVG, em nível nacional. O único trabalho parecido de que tive notícia foi feito em uma cidade da Colômbia, mas em nível local. O IVG pode ser aplicado em qualquer lugar do mundo, com as devidas adaptações, desde que exista um banco de dados.


O IVG é um índice que reforça que a exclusão social amplia a vulnerabilidade das populações às doenças?

Confalonieri:
A exclusão social reforça a vulnerabilidade a doenças e aos desastres ambientais. Essa vulnerabilidade é causada por falta de acesso a serviços de saúde, baixa renda e escolaridade, pouco poder político, falta de informação e precariedade das habitações.


Diferentes convenções internacionais recomendam que os países se mobilizem em torno de levantamentos envolvendo os desdobramentos das mudanças no clima. Quais países estão mais mobilizados nesse sentido?

Confalonieri:
Muitos estudos de vulnerabilidade vêm sendo feitos em todo o mundo, sobretudo na Europa, América do Norte e Japão. Países africanos estão na pior situação. Não fazem esses estudos porque têm outros problemas mais imediatos. Eles carecem, inclusive, de grupos habilitados para realizar esse tipo de trabalho. O Brasil tem um bom nível, com a comunidade científica já mobilizada. Nos estudos de impacto das mudanças climáticas, destacam-se três instituições: o CPTEC, que cuida da parte de clima propriamente dito; a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), na área de impactos na produção de alimentos; e a Fiocruz, no campo da saúde. Os grupos de estudos econômicos e sociais só começaram a se envolver agora com a agenda climática. Mas a nossa carência principal são estudos de impacto das mudanças climáticas na diversidade biológica e na modificação de ecossistemas, áreas de grande vulnerabilidade em um país megadiverso.


Existe entre os países um consenso de que as mudanças climáticas, de fato, ocasionarão desdobramentos no quadro da saúde pública?

Confalonieri:
Esse consenso existe dentro do comitê do qual participo no IPCC. O grupo tem representantes de Alemanha, Índia, Moçambique, Rússia, Estados Unidos, Inglaterra, Nova Zelândia, Austrália e Argentina. Nosso papel é analisar publicações científicas, identificar os trabalhos relevantes, fazer uma síntese e apresentar conclusões. Esse trabalho oferece subsídios, por exemplo, para as Convenções do Clima, que tratam da política para o setor.


Adianta o Brasil agir no combate às mudanças climáticas se os países considerados os principais responsáveis pelo problema, sobretudo os Estados Unidos, cruzarem os braços?

Confalonieri:
Não somos tão poluidores quanto os Estados Unidos, mas o Brasil também é um poluidor importante, em virtude do desmatamento e queimadas. E o nome já diz: as mudanças climáticas são globais. O Brasil é um país com grande vulnerabilidade: seu território é extenso; sua população enfrenta uma série de problemas sociais; existe uma fragilidade institucional. Precisamos nos preparar para os impactos. Precisamos fortalecer o SUS, independentemente das mudanças climáticas. Um exemplo de ação mais específica seriam sistemas de alerta precoce, que permitissem proteger a população de áreas vulneráveis a eventos climáticos extremos, antes que se transformem em desastres.


O que diz o relatório de 2007 do Grupo de Trabalho 1 do IPCC


• A concentração atmosférica de dióxido de carbono aumentou de 280 partes por milhão (ppm), na era pré-industrial, para 379 ppm, em 2005, sobretudo devido ao uso de combustível fóssil.


• O nível do mar subiu 3,1 milímetros por ano entre 1993 e 2003.


• O período de 1995 a 2006 compreendeu 11 dos 12 anos mais quentes desde 1850.


• A temperatura total subiu 0,76 ºC entre 1850-1899 e 2001-2005.


• Mesmo que as concentrações de aerossóis e gases de efeito estufa se mantenham constantes, nos níveis do ano 2000, é esperado um aquecimento de 0,1 ºC por década.


Fonte: IPCC

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