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04/04/2004

Uso de estimulantes injetáveis pode estar ligado à ocorrência de hepatite C entre ex-jogadores de futebol

por Raquel Aguiar






Prática comum nas décadas de 1970 e 1980, o uso compartilhado de seringas para a injeção de estimulantes pode estar ligado à ocorrência de casos de hepatite C entre ex-jogadores de futebol. A suspeita é resultado da pesquisa realizada pelo hepatologista Francisco José Dutra Souto, professor da Universidade Federal do Mato Grosso, e publicada na revista Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, editada pela Fiocruz. Além de alertar para um problema de saúde pública ainda obscurecido pelo desconhecimento dos médicos e pelo preconceito dos próprios ex-jogadores em relação ao dopping, a pesquisa reúne pela primeira vez indícios epidemiológicos capazes de caracterizar um novo grupo de risco não só para a hepatite C, mas também para outras doenças transmissíveis pelo sangue.

"Entrevistamos e testamos para hepatite C 40 ex-jogadores de futebol mato-grossenses que estiveram em atividade entre 1970 e 1989 e que relataram ter usado estimulantes injetáveis antes de partidas, uma prática comum sobretudo em times de futebol pequenos e em cidades do interior", apresenta Souto. "Deste grupo, verificamos que três jogadores estavam infectados, o que representa 7% do total. Como as estatísticas nacionais para a doença não ultrapassam 2% da população, a porcentagem encontrada entre estes ex-jogadores salta aos olhos. Certamente nossa amostragem é muito reduzida para obtermos resultados conclusivos, mas aponta a existência de um problema de saúde pública que precisa ser considerado. Como a hepatite C é uma doença que permanece assintomática na maior parte dos casos, é possível que muitos ex-jogadores que passaram pela experiência do compartilhamento de seringas para a injeção de estimulantes estejam infectados e não saibam disso".

Já existiam relatos dispersos relacionando a ocorrência de hepatite C entre ex-jogadores de futebol e o uso de estimulantes injetáveis, mas a pesquisa liderada por Souto é a primeira a realizar um levantamento segundo critérios epidemiológicos e, o que é mais importante, a procurar os ex-jogadores propondo a testagem. "Localizar estes profissionais foi muito difícil", recorda. "A Federação de Futebol do Mato Grosso e mesmo o Sindicato dos Jogadores têm registros escassos, por isso contamos com informações fornecidas pelos próprios atletas para localizar seus antigos colegas. Outro problema foi a recusa de muitos deles em participar da pesquisa, acredito que pelo temor de serem recriminados pelo uso de dopping no passado ou pelo medo de descobrirem-se portadores de alguma doença. Ao todo, 30% dos ex-jogadores procurados se recusou a participar da pesquisa".

Os 40 ex-jogadores testados no estudo apresentavam perfil semelhante: idade entre 41 e 53 anos e período de atividade profissional em torno de oito anos, tendo atuado predominantemente em times pequenos. Todos relataram ter usado estimulantes injetáveis ao menos uma vez, 60% admitiram que esta era uma prática corriqueira e 39 entrevistados afirmaram ter compartilhado seringas. As injeções foram recebidas por cada atleta durante um período médio de 3,5 anos e geralmente eram aplicadas por pessoas sem preparo profissional adequado, inclusive por membros da própria equipe. Raramente o jogador sabia qual a substância injetada. Para eliminar outros fatores que pudessem incluir os entrevistados em grupos de risco para a hepatite C, foram apenas considerados aqueles que não possuíam tatuagens, não haviam recebido transfusão de sangue ou usado drogas ilícitas. Optou-se por observar a prevalência de hepatite C, e não de outra patologia transmissível pelo sangue, porque esta doença não é comumente transmitida por via sexual, o que já reduz a possibilidade de confusão com outros fatores de risco.

"Encontrar uma prevalência maior de hepatite C no grupo estudado em relação aos índices nacionais não significa que, necessariamente, a responsabilidade seja do uso de estimulantes através de seringas compartilhadas", pondera Souto. "No entanto, ainda que sua amostragem não seja capaz de fornecer um resultado fidedigno a pesquisa cumpre o papel de localizar um problema de saúde pública e de despertar o interesse na realização de um estudo mais amplo, que englobe também os centros tradicionais do futebol no país. Além disso, ao indicar que os ex-jogares de futebol que atuaram nas décadas de 1970 e 1980 são um grupo de risco para a hepatite C, o estudo também pode contribuir para motivar os ex-jogadores que passaram pela experiência de uso compartilhado de agulhas e seringas a realizar o teste para detectar a doença".

Como permanece assintomática na maioria das vezes, a infecção por hepatite C só costuma ser descoberta quando o paciente já alcançou fases avançadas da doença, mesmo com o desenvolvimento de cirrose, o que reduz suas chances de recuperação. Sem contar que uma pessoa infectada pode transmitir a doença ainda que não tenha manifestado nenhum de seus sintomas. "A preocupação maior não é com os atletas em atividade, mas com os ex-jogadores que atuaram no período anterior ao uso de seringas e agulhas descartáveis. Além da explosão da Aids na década de 1980 ter reduzido drasticamente a reutilização de seringas e agulhas, o estabelecimento do uso regular de testes anti-dopping também contribuiu para diminuir o uso de estimulantes", justifica o pesquisador.

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