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16/03/2016

Vetores da doença de Chagas também ingerem vegetais

Maíra Menezes (IOC/Fiocruz)


Uma pesquisa liderada pelo Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) pode mudar a percepção sobre um dos aspectos mais conhecidos da biologia dos triatomíneos, insetos transmissores da doença de Chagas, popularmente chamados de barbeiros. Há mais de cem anos, a literatura científica aponta que esses vetores se alimentam exclusivamente de sangue. Porém, uma pesquisa inédita mostra que eles também podem consumir açúcar e nutrientes a partir de frutos. Mais que isso, o trabalho indica que a alimentação vegetal, de forma complementar à ingestão de sangue, traz benefícios para os insetos, incluindo aumento da expectativa de vida. Com o título Everybody loves sugar (Todos amam açúcar, em tradução livre), o artigo foi publicado na revista científica Parasites and Vectors.

Estudo aponta que tomate faz bem à saúde dos barbeiros. Experimento foi feito com ninfas de 1º estágio, primeira fase do ciclo de vida destes insetos (foto: Gutemberg Brito)

 

“Esta é a primeira descrição de um triatomíneo alimentando-se de material vegetal. A observação foi feita em um experimento, em condições de laboratório, mas, sem dúvida, esse comportamento pode ocorrer na natureza. A descoberta adiciona um elemento novo ao ciclo de vida do barbeiro, que nunca foi pensado e pode impactar no conhecimento sobre a transmissão da doença de Chagas e nas estratégias de controle do agravo”, afirma o pesquisador Fernando Genta, do Laboratório de Bioquímica e Fisiologia de Insetos do IOC, que coordena o estudo.

Também participaram da pesquisa os Laboratórios de Biologia Molecular de Insetos; Epidemiologia e Sistemática Molecular; e Ecoepidemiologia da Doença de Chagas do IOC. A Universidade Federal Fluminense (UFF), o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Entomologia Molecular e as Universidades de Liverpool e Lancaster, no Reino Unido, também colaboraram com o trabalho.

Entre açúcar e tomates

Dois tipos de experimentos foram realizados para investigar o hábito alimentar dos barbeiros. Foi usada a espécie Rhodnius prolixus, que é amplamente adotada em estudos científicos. O primeiro teste foi realizado com triatomíneos de diferentes fases de vida, incluindo desde ninfas de 1º estágio até insetos adultos. Os barbeiros foram colocados em recipientes onde havia um pedaço de algodão embebido em água com açúcar. A técnica é usada rotineiramente em colônias de insetos mantidas em laboratório, como forma de oferecer uma fonte de nutrição para as espécies que se alimentam naturalmente de seiva e néctar de plantas ou frutos. Um corante azul foi aplicado à solução, permitindo observar a presença do alimento no aparelho digestivo dos barbeiros. Para ter certeza de que os triatomíneos não estavam apenas interessados em ‘beber água’, outro grupo de vetores foi posto em um recipiente com um algodão umedecido apenas com água, também com aplicação do corante. Neste caso, não houve consumo do líquido.

 
Arte: Jefferson Mendes
 
 

Em um segundo teste, ninfas de 1º estágio – primeira fase do ciclo de vida dos barbeiros – foram colocadas em recipientes onde havia tomates-cereja. O DNA do fruto foi encontrado nos insetos, indicando o consumo. Após 30 dias, esses triatomíneos apresentaram vantagens em relação aos barbeiros que não dispunham de fontes vegetais para alimentação. De acordo com Genta, um dos dados mais importantes foi a redução na mortalidade após a ingestão de sangue, que caiu de cerca de 40% para aproximadamente 20%. “Os barbeiros são capazes de suportar longos períodos entre as alimentações sanguíneas. Isso é útil na natureza porque eles podem demorar até encontrar animais dos quais possam se alimentar. Por outro lado, ao ingerir sangue após um período de jejum, os triatomíneos muitas vezes acabam morrendo por não conseguir processar esse alimento. No estudo, observamos que os barbeiros que têm acesso à alimentação vegetal são mais resistentes”, conta o pesquisador. Os vetores que consumiram tomates apresentaram ainda maior ganho de peso após a alimentação sanguínea, o que indica aumento no volume de sangue ingerido. A produção de urina desses insetos também foi superior, apontando melhoria na hidratação.

Mais saudáveis

Os dados indicam que a alimentação fitófaga – com vegetais – pode tornar os insetos mais saudáveis, o que pode ter diversas consequências. “Barbeiros que vivem mais tempo podem picar mais pessoas. Se esses vetores estiverem infectados pelo parasito Trypanosoma cruzi, isso resultaria na transmissão da doença de Chagas para um número maior de indivíduos. Por outro lado, compostos de plantas podem ter ação antiparasitária e os insetos mais saudáveis podem ter sistemas imunes mais eficazes. Esses fatores dificultariam a infecção do barbeiro pelo T. cruzi, reduzindo a transmissão da doença. Para saber como essa equação funciona, precisaremos de outras pesquisas”, pondera Genta.

Segundo Fernando Genta, pesquisas poderão investigar se o consumo de vegetais afeta a transmissão do parasito 'T. cruzi' pelos barbeiros (foto: Gutemberg Brito)

 

O estudo deixa claro que os vegetais não são suficientes como fonte de alimentação exclusiva dos barbeiros, uma vez que esses insetos não conseguem atravessar todas as suas fases do desenvolvimento sem a ingestão de sangue. Mas, para os autores, frutos ou plantas podem ser fontes complementares de nutrientes e água, prolongando a vida dos triatomíneos nos períodos de jejum entre as alimentações sanguíneas. Por outro lado, a busca por nutrientes vegetais pode ser um fator na escolha de habitat pelos insetos. Os pesquisadores lembram que barbeiros são frequentemente encontrados associados à produção de açaí, fruto que, assim como os tomates, possui casca fina. No Norte do país, a associação dos triatomíneos com esse alimento é causa de surtos de doença de Chagas oral, que ocorrem quando os insetos são moídos na preparação de polpa e sucos.

A descoberta sobre a capacidade de alimentação vegetal dos barbeiros também pode ser uma vantagem para as pesquisas científicas. De acordo com Genta, muitas espécies de triatomíneos não costumam ser mantidas em laboratório porque os insetos dificilmente sobrevivem fora do ambiente natural. No entanto, se o mesmo comportamento observado no Rhodnius prolixus ocorrer em outras espécies, é possível que a suplementação nutricional com açúcar ou vegetais facilite a manutenção destes insetos em colônias. “Isso seria uma grande ajuda para os estudos”, comenta o pesquisador. “Essa descoberta aproxima os barbeiros de outros insetos vetores de doenças, como mosquitos e flebotomíneos, que possuem as duas formas de alimentação. É um grande campo de pesquisas a ser explorado”, completa.

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