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12/05/2016

Atingidos pelo desastre relatam dramas pessoais em seminário

André Costa (Agência Fiocruz de Notícias/AFN)


Com o eixo Uma nova dinâmica de desenvolvimento econômico e social sustentável com projetos de mineração, a última mesa de discussão do seminário O desastre da Samarco: balanço de seis meses de impactos e ações, que aconteceu nos dias 5 e 6 de maio em Minas Gerais, trouxe a perspectiva dos atingidos, de movimentos sociais envolvidos na causa e de acadêmicos, apresentando em primeira mão relatos dos danos causados pela destruição da barragem.

Vítimas da tragédia afirmaram que ainda há muitas famílias não reconhecidas como atingidas pelo rompimento da barreira (Foto: Peter Ilicciev)

 

Os problemas vividos por atingidos foram um ponto recorrente na segunda mesa. Estas pessoas, segundo diversos relatos, sofrem tanto por não terem seus direitos respeitados, como, por exemplo, ocorre no caso de famílias não reconhecidas como atingidas, quanto por não saberem quais serão as mudanças em suas vidas daqui para frente, uma vez que vários de seus modos de vida tradicionais tornaram-se inviáveis devido à destruição causada pelo rompimento da barragem.

A mesa também trouxe algumas reflexões de cunho mais teórico sobre a atividade minerária, e este foi o caso do primeiro palestrante do dia, Marcos Calazans, professor da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), que discorreu sobre a suposta neutralidade da tecnologia e da ciência. Essas áreas, afirmou o professor, são continuamente entendidas como neutras, quando, na verdade, se mostram profundamente ideológicas. Segundo Calazans, a mineração não pode ser entendida como uma vocação natural de Minas Gerais, mas é resultado de um modelo econômico neoliberal. O professor também criticou abordagens voltadas apenas para a diminuição de riscos e que não ponham este próprio modelo em questão, definindo-as como “soluções paliativas e não estruturais”.

A participante seguinte, Denise Pereira, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), denunciou as dificuldades vividas por atingidos. Nem todos que sofreram com o rompimento da barragem são reconhecidos como tal, disse ela, uma vez que os critérios de reconhecimento são definidos pela Samarco; uma pessoa que teve seu modo de subsistência arruinado, por exemplo, não necessariamente terá os danos reparados.

Pereira acrescentou que, mesmo entre os assentados, as mudanças serão brutais: muitos com frequência vão para espaços sem qualquer relação com o anterior, em conjuntos habitacionais que não permitem a manutenção dos modos de vida anteriores. A professora fechou sua participação conclamando que se pense num futuro pós-mineração, apresentando os casos da França e da Alemanha, onde antigas minas viraram pontos turísticos.

Já Marcelo Firpo, da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), compartilhou sua experiência na Caravana Territorial da Bacia do Rio Doce, que levou 120 pessoas a percorrer aréas atingidas por cinco dias no mês de abril. Firpo disse que o objetivo da Caravana é “criar uma ferramenta pedagógica e política”, estabelecendo relações horizontais e promovendo o diálogo com agricultores, pescadores, lideranças comunitárias e índios tupiniquim, botocudos e guarani. Segundo seu relato, a Caravana, que seguiu quatro rotas, visa o fortalecimento político dos atores envolvidos, por meio de parcerias e da articulação com redes e movimentos, visando, em sua definição, “um exercício permanente de alteridade”.

A representante do Movimentos dos Atingidos por Barragens (MAB), que existe há mais de 20 anos, Letícia Oliveira, foi a próxima pessoa a tomar a palavra, denunciando, antes de tudo, os critérios que definem quem é e quem não não atingido. Segundo ela, nos municípios de Barra Longa e de Mariana, embora a Samarco tenha começado a pagar indenizações nesses lugares, há ainda 300 pessoas nos municípios que não receberam direito algum.

Oliveira falou um pouco sobre os dramas de 300 famílias realocadas, que tiveram que negociar com a Samarco sem ter tempo para se organizar e acumular grande discussão. A ativista denunciou que a mineradora procura fazer negociações individuais com os moradores, de modo a dividi-los e a reduzir a capacidade de resistência coletiva. “Quem decide o que será feito quais serão os critérios [da compensação] é a Samarco. Quem define quem e quanto cada um deve receber também é a Samarco. Ela tem trabalhado com o conceito de situação anterior, sabemos que deve haver uma compensação. Se tudo voltar a situação anterior, não terá havido compensação”, afirmou.

O palestrante seguinte foi o morador de Barra Longa Flávio Márcio, representando os atingidos. Márcio compartilhou as dificuldades de viver no município de 6.800 habitantes, cujo modo de vida pacato foi largamente alterado desde o desastre. “A lama chegou na cidade e continua na cidade. Ano passado tivemos um só caso de dengue, enquanto este ano já tivemos 400. Suas ruas estão esburacadas. Cada ponto de quintal tem um buraco de lama, e ela é o trem mais esquisito que já vi. A empresa diz que ela não é tóxica, mas nós não sabemos. A cidade inteira foi afetada. Temos hoje mais de 600 funcionários de empreita por lá”, disse.

Márcio também comentou sobre a dificuldade de se organizar a população para demandar seus direitos perante a mineradora e o poder público, uma vez que isso não faz parte da cultura política local e a situação é inédita. Márcio mencionou uma reunião realizada na semana passada na qual se discutiu a necessidade de criar cercas para o gado, uma vez que os animais não podem mais beber a água do rio. Segundo o representante dos atingidos, a Samarco está fazendo cercas de três metros de espaçamentos, insuficientes para conter os animais, e se recusa a ouvir as demandas dos moradores para que o espaçamento reduza para 1,5m.

O último palestrante do seminário foi o índio Douglas Krenak, representando a tribo Krenak, para quem o Rio Doce era uma entidade sagrada. “Nós temos um estilo de vida que as pessoas chamam de particular ou diferente, mas é uma forma de tentar sobreviver que ajuda outras pessoas. Nossa vida perpassa pela questão de preservar e utilizar, produzir produzindo”, disse. “Somos uma sociedade humana, e toda sociedade humana é dinâmica e não estática. Podemos ajudar a pensar em outras formas de amenizar essa situação, pois temos tecnologias e ciências avançadissimas, como técnicas de preservação e permacultura. O estado tenta colocar o povo indígena como primitivo, quando na verdade não queremos nada disso, queremos entender que progresso é esse e participar disso, porque temos muito a contribuir, de forma a respeitar os outros e não matar pessoas”.

Krenak contou que seu povo é sistematicamente atacado desde 1808, quando Dom João VI declarou guerra contra os Krenak. “Hoje a guerra é contra todos nós. Todos nós estamos nessa guerra justa”, disse.

O índio afirmou que sua tribo tem sido invisibilizado em meio a toda a crise, e que nem sequer foi consultado ou ouvido por órgãos federais. Ele contou também o caso de seu tio, de 105 anos, que está em depressão desde o desastre, sem entender por que não pode entrar na água, e disse que a autoestima na tribo nunca esteve pior. Krenak, que lembrou que povos indígenas têm tido seus direitos constitucionais repetidamente violados, encerrou exigindo uma profunda reflexão acerca dos interesses prioritários da sociedade. “O rio é sagrado para nós, mas não para a Samarco nem para a Vale. Temos que começar a pensar em uma nova dinâmica de desenvolvimento humano”.

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