09/08/2017
A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) iniciou-se por um confronto regional entre o Império Austro-Húngaro e a Sérvia, em 28 de julho de 1914. O conflito se expandiria em luta armada em escala europeia, quando a declaração de guerra austro-húngara estendeu-se ao Império Russo em 1º de agosto de 1914. Finalmente, passaria a ser uma guerra mundial da qual participaram 32 nações, organizadas em blocos opostos: a Tríplice Entente (aliados), formada inicialmente por Reino Unido, França e Império Russo, aos quais outros 25 países se coligaram, inclusive o Brasil, e a Tríplice Aliança (impérios centrais), integrada pelo Império Alemão, Império Austro-húngaro, Império Otomano e Bulgária.
Em uma página dobrável do livro The Great World War está um mapa colorido da Europa à época dos conflitos hoje conhecidos como Primeira Guerra Mundial (Fotos: Jeferson Mendonça - COC/Fiocruz)
Considerada por seus contemporâneos como a mais terrível das guerras, o conflito assumiu uma dimensão extraordinária com o alistamento de milhões de soldados, a adoção do sistema de trincheiras com sucessivas linhas de defesa e o uso, pela primeira vez, de armas até então desconhecidas ou que não podiam ser produzidas em escala industrial: gases tóxicos, submarinos, aviões e tanques. O uso massivo de metralhadora e da artilharia pesada também contribuiu para a dimensão mortal e destrutiva inédita. A primeira guerra moderna em termos tecnológicos deixou um saldo sangrento: estima-se em mais de 10 milhões os combatentes mortos e 20 milhões de feridos.
A Primeira Guerra na Coleção Oswaldo Cruz
Vestígios desse trágico conflito estão presentes na biblioteca particular de Oswaldo Cruz. Totalizam 10 registros, entre livros e folhetos com menos de 50 páginas, publicados em português, inglês, francês e alemão.
As datas de publicação (1914 e 1915), e os temas abordados nessas obras sugerem o interesse por notícias e informações a respeito do conflito ainda em seu início, como por exemplo, The great world war: a history, editado pela Gresham Publishing Company de Londres. Encontra-se na biblioteca de Oswaldo Cruz o primeiro título de uma coleção de nove volumes, organizada por Frank Mumby (1872-1954), jornalista e historiador do comércio de livros na Inglaterra. Publicados em 1915 e 1916, os livros narram em detalhe os eventos em curso, e são ilustrados com fotografias, mapas e planos. Esses números estavam disponíveis apenas por assinatura diante das dificuldades de produção naquele momento, principalmente a obtenção de papel. Não obstante, observa-se a qualidade da publicação já na capa, que atrai o leitor: nela estão impressos vários brasões. Eles representam a República Francesa (RF); o Império Russo (água bicéfala com três coroas, símbolos de poder e sabedoria, e São Jorge, santo padroeiro da Rússia); o Império Sérvio (águia bicéfala com flor de Lis e escudo); o Império Belga (leão); o Reino Unido (dois conjuntos de três leões, uma harpa, um leão e flor de lis); e o Império Japonês (crisântemo com 16 pétalas).
Organizada por Frank Mumby (1872-1954), jornalista e historiador do comércio de livros na Inglaterra, a coleção é ilustrada com fotografias, mapas e planos
Outros dois títulos a destacar são 1815-1915 du congrés de Vienne a la guerre de 1915, de Charles Seignobos, notório historiador francês especializado na Terceira República Francesa e membro da Liga dos direitos do homem, e Comment les AustroHongrois ont fait la guerre en Serbie, de Rodolphe Archibald Reiss, alemão-suiço, pioneiro em ciência forense, professor, e escritor. Ambos foram publicados em 1915, pela Editora Colin, fundada em 1870 e que se tornou uma referência na área de educação no início do século 20. Essas publicações integram um conjunto de dez folhetos, em forma de brochura, vendidos a baixo preço, e publicados pelo Comité de Estudos e Documentos sobre a Guerra, formado em 1914 por um grupo de célebres intelectuais universitários franceses da época: Ernest Lavisse, Émile Durkheim (presidente e secretário, respectivamente), Charles Andler, Joseph Bédier, Henri Bergson, Émile Boutroux, Ernest Denis, Jacques Hadamard, Gustave Lanson, Charles Seignobos e André Weiss. A coleção foi projetada como parte das iniciativas de resistência à invasão da França pela Alemanha, e contou com o apoio financeiro da Câmara de Comércio de Paris, e o ministério dos Negócios Estrangeiros.
Os crimes de guerra, abordado por Reiss, são também o tema de outra obra da biblioteca de Oswaldo Cruz. Nesse caso é o lado oposto que denuncia, o Ministério das Relações Exteriores alemão. Datado de 1915, e publicado em língua portuguesa, o folheto é um manifesto racista: O emprego, contrário ao Direito Internacional, de tropas de cor, não civilizadas, no trabalho europeu da grande guerra, por parte da Inglaterra e da França. Trata-se de um conjunto de depoimentos de militares e civis que relatam atrocidades e o extermínio de feridos de guerra, praticados por estrangeiros, em particular africanos, contratados pelos exércitos aliados.
Por último, uma curiosidade: o folheto O desastre do Lusitania e os verdadeiros responsáveis. Trata-se de uma folha impressa que relata o torpedeamento do transatlântico Lusitania por um submarino alemão em 7 de maio de 1915. A embarcação, de bandeira britânica, foi considerada uma das maiores do mundo na época de sua construção em 1907. Ela foi atingida no percurso entre New York e Liverpool, vitimando cerca de 1.200 pessoas. Alguns anos antes, Oswaldo Cruz fizera o mesmo trajeto. Após participar da 3ª Convenção Sanitária Internacional, na Cidade do México, e visitar Washington, onde se encontrou com o presidente Theodore Roosevelt, embarcara no Lusitania em 14 de dezembro, rumo a Liverpool, onde visitou a Escola de Medicina Tropical, seguindo depois para Londres, onde passou o Natal.
Destruição do navio Lusitania não pode ser isolado do desenrolar da guerra, diz o folheto
Oswaldo Cruz: testemunha do conflito
Em 15 de junho de 1914, Oswaldo Cruz embarcou para a Europa com a mulher, Emília da Fonseca Cruz, e os três filhos. Foram acompanhados de uma de suas cunhadas, a sogra e uma governanta. Desembarcou em Paris em meados de julho, e poucas semanas depois se viu obrigado a deixar a capital francesa em vista da declaração de guerra da Alemanha à França, o que ocorreu em 3 de agosto. Nesse mesmo dia embarcou para Londres, onde, julgava, os riscos seriam menores. Contudo, no dia seguinte, em 4 de agosto de 1914, o governo britânico, sob comando do primeiro-ministro Henry Asquith, declarou guerra ao Império Alemão.
Assim, súbita e inesperadamente, a família se viu em meio ao conflito mundial, vivenciando as agruras de um país em guerra. Em cartas ao filho, Bento, e à mãe, Amália Taborda Bulhões, menciona com frequência os boatos que corriam pela cidade sobre um possível bombardeio por parte dos zeppelins alemães. Conta que, à noite, a cidade ficava às escuras, com todos os “combustores” apagados. Somente o Hyde Park ficava iluminado para enganar dar a impressão de que ali era o centro da cidade, desviando os ataques, portanto, de locais habitados. Já, à mãe, em 22 de outubro, diz que o retorno da família dependeria dos desdobramentos da guerra, pois àquela altura não havia nenhuma segurança para uma viagem marítima. Comenta também que a cidade era segura, porém estava “triste”. As folhas haviam começado a cair, o sol quando aparecia era encoberto por névoa densa cinzenta, e a noite era tomada pela escuridão. Como que para acalmar a mãe ou mesmo por convicção, o cientista termina o relato dizendo: “os zeppelins são esperados mas não vieram e penso que nunca virão”.
Como se sabe, enganou-se: nos anos seguintes, os zeppelins do Império Alemão realizaram 51 operações aéreas contra a Inglaterra, causando a morte de 58 soldados e 500 civis. O primeiro ataque foi na periferia da cidade inglesa de Great Yarmouth no dia 19 de janeiro de 1915; Londres seria atingida em 1º de junho. O uso dessas máquinas teria grande impacto na opinião pública ao tornar alvo a população civil, subvertendo o costume segundo o qual as batalhas envolviam profissionais localizados numa linha de frente.
Integram a edição diversos retratos de militares e fotografias de cenas da época, como esta de um dirigível a sobrevoar a cidade de Oostende, na Bélgica (Foto: The Great World War)
Oswaldo Cruz não assistiu a primeira invasão aérea. Estava à bordo do Frísia, navio de bandeira holandesa (nacionalidade que assumira posição neutra diante do conflito), rumo ao Brasil, onde chegou ao final de janeiro. Tomara a decisão de retornar sozinho, pois julgara ser mais seguro deixar a família em Londres do que atravessar o oceano sob o risco de um bombardeio dos submarinos alemães, que estavam atacando navios mercantes e de passageiros. Mais um engano. Talvez, por não acreditar que os alemães ampliariam os combates a cidades situadas fora da zona de guerra para atingir a população civil. Em carta à esposa em 9 de junho de 1915 Oswaldo Cruz comenta: “fiquei aflitíssimo com a notícia da visita do zeppelin a Londres e por isso te telegraphei pedindo que voltasses. Já não há mais segurança aí. Não temo o resultado dos zeppelins como armas de guerra, mas são capazes de causar sérias infelicidades”. A família saiu ilesa do ataque aéreo e deixou Londres no início de julho, chegando ao Rio ao final de agosto.
As obras
- Alemanha. Ministério das Relações Exteriores. O emprego, contrário ao Direito Internacional, de tropas de cor, não civilizadas, no trabalho europeu da grande guerra, por parte da Inglaterra e da França. Berlim: s.n, 1915. 36 p.
Cintra, Coelho M. Pró-Germania!. Rio de Janeiro: Rohe, 1914. 46 p.
- Cronologia dos documentos oficiaes inglezes: desde a mäo posta sobre o Egito em 1882 até a sua anexäo definitiva. Amsterdam: s.n, 1915. 12 p.
- Documentos officiaes: relativos á guerra européa de 1914. s.l: s.n, s.d. 46 p.
- Fleischer, Max. Für die länder spanischer und portugiesischer zunge. Frankfurt: Nachrichtendienst, 1915. 1 f.
- Helfferich, Karl. A origem da guerra mundial. s.l; s.n; s.d. 48 p.
- Mumby, Frank A.(ed.). The great world war: a history. London: Gresham Publishing Company Ltd, 1915. 112 p. ilus.
- O desastre do Lusitania e os verdadeiros responsaveis. Rio de Janeiro: Tyrnauer & Machado, s.d. 1 p.
- Reiss, R. A. Comment les AustroHongrois ont fait la guerre en Serbie. Paris: A. Colin, 1915. 48 p. ilus.
- Seignobos, CH. 1815-1915 du congrés de Vienne a la guerre de 1915. Paris: A. Colin, 1915. 35 p.