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26/03/2020

Covid-19: especialistas falam sobre a relevância do SUS

Cátia Guimarães (EPSJV/Fiocruz)


“Eu acho ingênuo a gente acreditar que o enfrentamento dessa epidemia no Brasil poderia se dar fora de um sistema público, fora de um Sistema Único de Saúde como é o SUS”. A análise é de Angélica Fonseca, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). Isso porque, segundo ela, o “sofrimento coletivo” que marca um momento como o atual não é suficiente para, “de uma hora para outra”, inverter a lógica dos interesses particulares. Um exemplo? Mesmo com uma demanda coletiva, o preço de um produto como o álcool gel, importante para a higienização das mãos e ambientes para o controle da transmissão do vírus da Covid-19, simplesmente disparou no mercado. “É preciso que haja estruturas estáveis que atuem reconhecendo a saúde como um bem comum”, explica.

Foi mais ou menos isso que o Brasil criou quase 32 anos atrás, quando inscreveu na Constituição Federal que “saúde é direito de todos e dever do Estado”. E o mesmo artigo nº 196 da Carta afirma que as políticas – “sociais e econômicas” – devem garantir o “acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Aparece aqui, pela primeira vez na letra da lei, o princípio da ‘universalidade’, uma das mais importantes características do SUS. E é porque essa mudança foi feita lá em 1988 que hoje ninguém por aqui precisa, por exemplo, pagar para fazer o teste de coronavírus nem para ser internado nos casos mais graves. “O fato de o Sistema Único de Saúde se organizar em torno das diretrizes de universalidade e de integralidade e, sobretudo, o fato de partir de um princípio constitucional da saúde como dever do Estado e direito de todos é extremamente importante no momento do enfrentamento de uma epidemia como essa do coronavírus”, destaca Cristiani Machado, pesquisadora e atual vice-presidente de Ensino, Informação e Comunicação da Fiocruz.

Talvez os mais jovens não lembrem, mas o fato é que nem sempre foi assim. Gastão Wagner, médico e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), explica que, se uma situação como essa acontecesse no Brasil antes do SUS, “80% a 90% da população” só teria como alternativa correr para o pronto-socorro, que incluía a rede filantrópica das Santas Casas, único serviço de assistência à saúde gratuito para qualquer pessoa naquela época. “Não havia Unidades Básicas de Saúde, não tinha garantido o acesso hospitalar, sem contar que era muito pequeno o número de hospitais”, descreve. Para quem já naturalizou o modelo implantado pelo SUS, ele lembra que, antes, havia dois ministérios, responsáveis por ações distintas e fragmentadas. “A saúde pública era isolada da rede”, diz, explicando que esse ministério se responsabilizava mais por ações de campanhas e vacinas, por exemplo. A assistência médica e hospitalar ficava a cargo do Ministério da Previdência e Assistência Social, que só atendia uma parte da população – aquela que tinha vínculo formal de trabalho. “O resto pagava pelo serviço privado”, conta. Ou corria para o pronto-socorro. Para se ter uma ideia do que isso significa, se esse modelo não tivesse mudado, os mais de 12 milhões de desempregados e 38 milhões de trabalhadores informais que existem hoje no Brasil simplesmente estariam sem cobertura em meio à pandemia.

“Seria uma catástrofe”, atesta Gastão, lamentando que a epidemia encontrará cenário semelhante a esse de três décadas atrás se chegar com força a alguns países africanos. Cristiani concorda: “Nos sistemas que são fortemente baseados no seguro social, como era o brasileiro antes do SUS e como é a maior parte dos sistemas latino-americanos hoje, o acesso da população é condicionado à inserção no mercado de trabalho, ao status social, ao nível de renda etc. Numa hora como essa [de epidemia], eles tendem a ter mais dificuldade de dar respostas integradas e coordenadas de atenção à população. E há ainda os sistemas fortemente privados, em que o acesso das pessoas é muito atrelado à capacidade de pagamento, seja de plano de saúde ou direto. Esses são os sistemas geradores das maiores desigualdades. E no momento de uma epidemia como essa, vão ter capacidade de resposta mais limitada, como está sendo claramente alardeado nos Estados Unidos”.

Gastão reconhece que é possível que os Estados Unidos não vivam tragédia semelhante ao que ele prevê em países africanos porque o país tem uma “quantidade de recursos financeiros muito superior” à maioria dos demais. Ainda assim, o sanitarista concorda que lá se observa o maior “modelo de fragilidade” no enfrentamento da epidemia até agora, com um sistema primordialmente privado, que exclui boa parte da população. Em reportagem publicada pelo jornal O Globo no dia 15 de março, o professor Jonathan Oberlander, professor de Medicina Social da Universidade da Carolina do Norte exemplificou o problema: “Dezenas de milhões de pessoas não têm cobertura, e podem ter medo de ir ao hospital ou fazer testes, por causa dos custos do atendimento”.

Cristiani se preocupa também com os países latino-americanos que segundo ela, em geral, têm “sistemas de proteção social mais precários e sistemas de saúde mais frágeis” do que o Brasil. “A maior parte dos sistemas de saúde da América Latina ainda está ancorada na lógica do seguro social: as pessoas que são trabalhadores formais têm o acesso à saúde vinculado à sua inserção no mercado de trabalho. Muitas vezes isso atinge 50% da população e a outra metade só tem acesso a serviços básicos, que não dão conta da maior parte dos problemas de saúde da população. O Brasil, na América Latina, é uma exceção no sentido da existência do sistema único de saúde, embora seja marcado por muitas contradições”, explica.

Desafios e contradições

A existência do SUS por aqui não significa que haja testes disponíveis para quem quiser nem que o Brasil esteja numa situação confortável em relação aos leitos que podem ser demandados caso a epidemia gere uma grande quantidade de casos graves. Ao criar um sistema universal de saúde, que reconhece a responsabilidade do Estado em prover as mais diversas ações (leia sobre a importância do caráter ‘único’ do SUS no enfrentamento da epidemia na próxima reportagem desta série), o Brasil enfrentou um desafio único no mundo: oferecer saúde pública e gratuita, entendida como um direito, num país continental, que hoje tem quase 210 milhões de habitantes. Para efeito de comparação, o Reino Unido, cujo sistema de saúde, o NHS (National Health Service), tanto inspirou os sanitaristas brasileiros, hoje tem uma população menor que 67 milhões. No Canadá, outro exemplo de sistema universal, esse número não chega a 38 milhões. Já no Brasil, hoje, 162 milhões de pessoas dependem exclusivamente do SUS, sem contar que os cerca de 47 milhões que têm planos de saúde também utilizam o sistema público - por exemplo, em procedimentos como vacinação e transplantes.

Essa foi uma ousadia, que já dura mais de três décadas. Mas, aliado a ela, existe também um problema crônico: o subfinanciamento, principal obstáculo apontado por profissionais e pesquisadores da área desde a criação do SUS. “O SUS nunca teve recursos suficientes para a concretização plena dos seus princípios e vem sofrendo restrições muito importantes no período mais recente, com a Emenda Constitucional 95 e outras medidas que estão subtraindo recursos da saúde, justamente quando a nossa população está ficando mais idosa”, explica Cristiani. Segundo cálculos dos economistas Francisco Funcia, Rodrigo Benevides e Carlos Ocké-Reis, só com a Emenda Constitucional 95, que estabeleceu um teto de gastos para o governo federal, o SUS perdeu R$ 22,48 bilhões em entre 2018 e 2020. Agora, diante da epidemia, recursos extras têm sido buscados pelo governo.

Outra “contradição” importante do sistema brasileiro, destacada por Cristiani, é a existência – e o crescimento – de um setor privado e lucrativo da saúde, muitas vezes beneficiado por recursos públicos, por exemplo, através de renúncia fiscal. E essa relação público-privado tem expressão direta agora no momento da epidemia, de acordo com Gastão Wagner. Isso porque, segundo ele, um gargalo do país, que precisa e pode ser contornado a tempo, é a quantidade de leitos com terapia intensiva disponíveis para os eventuais casos mais graves de coronavírus. Neste momento, o ministério e algumas secretarias estaduais de saúde estão se adiantando na construção de hospitais em campos, estádios e outros espaços. A questão é que mais da metade dos leitos de UTI no Brasil estão em hospitais privados, que atendem à menor parte da população. “O SUS vai ter que assumir a regulação, o credenciamento, o gerenciamento desses leitos privados”, opina Gastão, citando a Espanha como exemplo de país que tomou essa medida em meio à atual epidemia.

Entre desafios e contradições, os pesquisadores não têm dúvida do saldo positivo de se ter um sistema público e universal de saúde antes, durante e depois de uma crise sanitária como a que se está vivendo. “Um efeito inesperado do coronavírus é o fortalecimento dessa ideia de que a atenção e o cuidado à saúde precisam estar fora do mercado. Cresce, no Brasil e no mundo todo, um reconhecimento da importância desses sistemas públicos”, conclui Gastão.

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