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24/04/2018

Editora Fiocruz lança 'Arquivo de um Sequestro Jurídico-Psiquiátrico: o caso Juvenal'

Fernanda Marques (Editora Fiocruz)


“Na manhã de 29.05.1968 no Sítio Morada Nova, o acusado desfechou, utilizando uma roçadeira, violentos ferimentos na pessoa de seu próprio irmão”, narrava a denúncia do Ministério Público. O acusado era Juvenal Raimundo de Araújo, talvez Juvenal Raimundo da Silva. Não se sabia ao certo nem o nome dele porque recusava-se a falar, não apresentava documentos civis e era louco. Por ter cometido um ato violento, foi confinado em um manicômio psiquiátrico, sob a justificativa de tratamento, e nunca mais voltou à liberdade. Permaneceu na clausura por 46 anos. Essa não é uma história de ficção. É uma história de injustiça analisada no livro Arquivo de um Sequestro Jurídico-Psiquiátrico: o caso Juvenal, da psicóloga Luciana Brito, título que inaugura a coleção Bioética e Saúde da Editora Fiocruz.

Juvenal foi o homem que mais tempo ficou confinado em um manicômio judiciário no Brasil, abandonado à espera de uma decisão oficial sobre sua experiência, banido do convívio social e do reconhecimento de direitos. “Realizado louco bandido”, Juvenal foi internado em 1968 no Instituto Psiquiátrico Governador Stênio Gomes, no Ceará, onde permaneceu até 2014: “tornado velho, demente e abandonado”, foi conduzido a um asilo. 

Se a Justiça considera 30 anos como pena máxima para prisão, o que aconteceu ali durante todo esse tempo? A autora Luciana Brito buscou responder a essa pergunta ao analisar o dossiê de Juvenal, sob a guarda do manicômio judiciário. Ela se debruçou sobre o arquivo para realizar uma análise das práticas discursivas de saber e poder sobre Juvenal. Seu estudo, ora publicado em livro, revela o funcionamento “da máquina de abandono que confiscou a existência de Juvenal”. 

Pessoas em sofrimento mental que cometem infrações são encaminhadas a manicômios judiciários. A primeira instituição do gênero no país foi inaugurada em 1921, na cidade do Rio de Janeiro. Entretanto, somente quase um século depois, em 2011, realizou-se o primeiro censo populacional dos indivíduos internados em manicômios judiciários, entidades que, após a Reforma Psiquiátrica, nos anos 1990, passaram a se chamar hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico. A autora Luciana Brito integrou a equipe de pesquisa que realizou esse censo. Os pesquisadores visitaram 26 manicômios judiciários, onde encontraram 3.989 indivíduos internados – em sua maioria, pretos e pardos, analfabetos e sem ocupação no mundo do trabalho.

“Pelo menos ¼ dos indivíduos internados em manicômios judiciários não deveria mais viver nesses espaços, seja porque havia uma sentença judicial que determinava a desinternação, seja porque estava internado sem processo judicial, ou ainda porque a medida de segurança estava extinta”, afirma Luciana Brito. “Para quase metade do total de homens e mulheres vivendo em regime de clausura, a internação não se explicava por critérios legais ou psiquiátricos”, completa a autora. 

O censo identificou 18 pessoas que viviam em regime de clausura por mais de 30 anos. Juvenal era o caso mais emblemático: em 1989, o Poder Judiciário prescreveu seu ato violento, seu processo penal foi extinto e ele recebeu um alvará de soltura, mas não tinha para onde ir e permaneceu no Instituto Psiquiátrico. Por tanto tempo “sequestrados” em manicômios judiciários, os “loucos bandidos” praticamente já não tinham vínculos familiares ou sociais. “A administração do manicômio sabia onde estava a família de alguns, mas esta se recusava a recebê-los de volta”, conta Luciana Brito. 

Conforme evidenciado pela autora, o manicômio judiciário funcionava em permanente tensão com a família, afastando-a, mas depois, contraditoriamente, a instituição solicitava a participação familiar e se queixava de sua ausência. Sem proteção e assistência, os “loucos abandonados” como Juvenal nunca ou pouco receberam atenção em saúde mental; não experimentaram condições de cuidado para que compartilhassem novamente a vida fora dos muros. 

“Viveram em regime de sequestração por tempo suficiente para a produção do abandono e o desaparecimento”, denuncia Luciana Brito. “As reivindicações da luta manicomial e as conquistas da Reforma Psiquiátrica brasileira nada significam em sua existência”, critica a autora, doutora em ciências da saúde, bioética e direitos humanos e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética.          

Coleção Bioética e Saúde

O campo da bioética não conhece fronteiras. As questões são atuais e delicadas, movimentam conflitos morais que provocam valores absolutos e relativos, universais e locais. Não há resposta única, e a coleção Bioética e Saúde aposta em narrativas seculares e pluralistas para temas difíceis. Profissionais de áreas diversas encontrarão aqui uma leitura inspiradora para melhor compreender o mundo contemporâneo. 

“Fazer bioética é filiar-se ao campo dos direitos humanos”, afirmam no prefácio do primeiro livro da coleção os editores por ela responsáveis, Debora Diniz, professora da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética, e Sergio Rego, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva da Fiocruz.

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