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05/02/2014

A epidemiologia é uma prática cultural, defende antropólogo

Fernanda Marques


O que a epidemiologia e a antropologia médica têm em comum? Ambas são disciplinas científicas que pesquisam padrões de doença e de comportamento. Contudo, a primeira tende a ser estatística e quantitativa e a segunda, textual e qualitativa. Juntar as duas é não só possível, mas também necessário. É o que demonstra o livro Epidemiologia e Cultura, de James A. Trostle, que acaba de ganhar edição em português. Lançado originalmente em inglês, pela Cambridge University Press, em 2005, o título agora integra a coleção Antropologia e Saúde da Editora Fiocruz.

Segundo o autor, professor da Trinity College, Hartford (Estados Unidos), epidemiologistas e antropólogos precisam encontrar meios de trabalhar juntos, de modo que, efetivamente, contribuam para o bem-estar humano. Para ilustrar sua tese, Trostle apresenta exemplos e analisa possibilidades de aplicação desse trabalho colaborativo. Antropólogo com larga experiência em projetos interdisciplinares, ele já atuou em mais de 20 países e foi consultor temporário da Organização Mundial da Saúde (OMS).

A epidemiologia é reconhecida por identificar e divulgar fatores de risco para doenças. No entanto, isso não faz com que as pessoas modifiquem seus comportamentos. “Nós, da saúde pública, temos importantes mensagens para as pessoas, mas estas têm suas vidas para levar. Existe, frequentemente, um grande abismo entre essas duas prioridades. Trata-se de uma questão sobre a qual os antropólogos refletem e seria bom incorporar tal raciocínio no desenho de melhores intervenções”, afirma S. Leonard Syme, professor emérito da Universidade da Califórnia, Berkeley (Estados Unidos), que assina o prefácio da edição inglesa.

A antropologia pode contribuir para uma leitura crítica de conceitos fundamentais à epidemiologia, como aqueles relacionados ao indivíduo, ao local e ao tempo. Com um olhar antropológico, também é possível compreender como as intersubjetividades pesquisador-pesquisado influenciam a geração dos dados, por mais objetivos que estes pareçam. Aliás, “este livro defende que a epidemiologia é uma prática cultural, embora frequentemente não seja reconhecida como tal”, destaca Trostle.

Para o planejamento de qualquer intervenção ou pesquisa na área da saúde, o conceito de ‘cultura’ é fundamental. Os padrões de doença observados, as enfermidades consideradas prioritárias, as preferências diagnósticas, as formas de cuidado escolhidas e os recursos de cura disponíveis dependem do contexto. E este é modelado segundo fatores sociais, ambientais e econômicos, assim como valores e práticas culturais. “Nosso meio de vida (que envolve trabalho, alimentação, atividades), combinado com nosso comportamento aprendido (inclusive conhecimento, mentiras e mal-entendidos), nossas técnicas de ajustamento ao ambiente e nossas maneiras de sentir e de acreditar, todos eles influenciam nossa suscetibilidade a enfermidades”, resume Trostle.

Um problema de saúde, portanto, pode revelar aspectos da sociedade em que ocorre. Um dos exemplos apresentados no livro é o da epilepsia. Pesquisas conduzidas em diferentes países mostraram os significados culturais dessa doença e como eles impactam a epidemiologia e o cuidado em saúde. Nos Estados Unidos, as pessoas com epilepsia usavam uma linguagem biomédica para explicar as causas da doença, mesmo quando os médicos não tinham tal explicação. Um diagnóstico de epilepsia era uma espécie de rótulo indesejável, que dificultava a vida diária das pessoas – só para citar um exemplo, a maioria dos seguros era mais cara para quem tinha epilepsia. Logo, não era incomum que as pessoas tentassem omitir episódios de convulsão.

Já no Equador, as pesquisas encontraram um dialeto emocional para explicar a epilepsia, referente aos nervos, ao medo, à frustração. Por sua vez, “no Quênia, a epilepsia era suficientemente estigmatizada para que as pessoas com o diagnóstico a rotulassem não como epilepsia, mas como uma manifestação da malária”, conta Trostle. Ainda no Quênia, acreditava-se que a epilepsia era contagiosa. Por isso, na zona rural do país, onde se cozinhava em fogueiras, se alguém tivesse uma convulsão perto do fogo, os demais evitavam tocá-lo e, dessa forma, queloides provocados por queimaduras se tornaram uma consequência da doença. Também havia pessoas que associavam a doença a interferências sobrenaturais.

“Quando os enfermos atribuem as causas ao nervosismo ou ao sobrenatural, frequentemente recorrem a tradições de cura não biomédica ou misturam a biomedicina com outras tradições”, salienta o autor. Isso inclui a combinação de medicamentos com chás, consultas hospitalares com tratamentos oferecidos por curandeiros. Esses comportamentos sinalizam que, embora os sintomas da doença não variem, as reações a eles podem ser bastante diferenciadas.

Por outro lado, também ocorreu de sintomas apresentados por porto-riquenhos em Nova York serem confundidos com os de uma crise epilética ou os de um colapso mental, o que, para os imigrantes, foi considerado uma ofensa – eles sabiam que o diagnóstico era de ataque dos nervos. Para os porto-riquenhos, aquilo era uma resposta cultural aceitável a fortes emoções, como luto e raiva, mas, para os médicos norte-americanos, representava uma forma pouco sofisticada de controlar sentimentos ou mesmo uma predisposição à histeria.

O ataque dos nervos é um exemplo de síndrome ligada à cultura, uma forma de sofrimento que não corresponde a qualquer diagnóstico biomédico, mas constitui um conjunto coerente de sintomas que se repetem – estudos identificaram que o ataque nos nervos de Porto Rico existia em muitos lugares com outros nomes. São exemplos que reforçam a centralidade da cultura, cuja compreensão ajudará a desenvolver políticas de saúde mais adequadas, aprofundar o conhecimento de causa e tratamento das doenças e criar ações mais eficazes para a promoção da saúde e para a prevenção de doenças.

No livro, Trostle defende que cultura é também “um conjunto de decisões públicas sobre quanto dinheiro deveria ser investido em hospitais versus armamentos, quais tipos de problemas de saúde constituem emergências e até que tipos de sofrimento e queixas podem ser resolvidos”. E o autor vai além: “o questionamento dessas decisões é o maior desafio no estudo da epidemiologia e cultura”, conclui.

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