15/09/2023
Carlos Henrique Assunção Paiva (COC/Fiocruz)*
Nas últimas semanas, assumindo o ambicioso compromisso de promover um balanço sobre a trajetória de duas importantes instituições da nossa saúde pública, a série especial O Ministério da Saúde e o PNI: trajetórias, balanço e perspectivas procurou dar conta de diferentes ideias, experiências e processos, ações e políticas que, ao longo de décadas, produziram respostas, com menor ou maior êxito, para alguns problemas postos para a população brasileira. No entanto, após uma leitura atenta das contribuições feitas por diferentes colegas, somos logo capazes de observar que, no seu conjunto, mais do que apresentar narrativas sobre respostas institucionais, nos deparamos com distintas situações em que o Programa Nacional de Imunizações (PNI) e em particular o Ministério da Saúde expressaram – em contextos específicos – verdadeiros projetos societários. Portanto, mais do que “responder” a problemas sanitários peculiares, essas instituições, dando voz a diferentes anseios da coletividade, apontaram para uma sociedade de novo tipo, mais justa, equânime e potencialmente solidária.
Em maior ou menor medida, esses seriam os elementos que fazem reunir os textos que publicamos em uma série temática que comemora os aniversários de 70 anos e 50 anos, respectivamente, do Ministério da Saúde e do seu Programa Nacional de Imunizações. Sem deixar de reconhecer os avanços e conquistas, a face necessária e acertadamente crítica dessas mesmas contribuições também revela que as diferentes trajetórias são, como era de esperar, imperfeitas. Há problemas de toda ordem, de financiamento, de recursos humanos, de infraestrutura, de concepção e outros que comprometem os resultados esperados e requerem do Estado e da sociedade organizada iniciativas que promovam as melhorias necessárias.
Ficou entendido também que a construção e a operação de instituições do porte do PNI e do próprio Ministério da Saúde, em suas inúmeras ações e políticas, não se restringem ao exame de suas burocracias técnicas. Nos últimos anos, aliás, soubemos valorizá-las mais do que antes e continua sendo importante seu fortalecimento técnico e institucional. Mas, ao mesmo tempo, precisamos de mais: é fundamental a existência de uma sociedade vigilante e influente no processo de formulação e implementação das políticas engendradas pelas burocracias aqui referidas, sem a qual, na perspectiva de Amélia Cohn, não seremos capazes de formular políticas públicas de fato “inteligentes” (Cohn, 1997).
Em se tratando de uma série temática desenvolvida em articulação e veiculada pela Assessoria de Comunicação da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), em parceria com a Agência Fiocruz de Notícias (AFN), esperamos que esses textos possam chegar além dos círculos dos sanitaristas e dos diversos especialistas que compõem os quadros da casa. Temos expectativas de que alcancem também, em especial, o cidadão brasileiro curioso e especulativo, mas inquieto com relação aos serviços de saúde dos quais é usuário. Abastecido com informações e perspectivas ricas como as que circularam nestas últimas semanas, acreditamos que possamos colaborar para uma leitura tanto positiva quanto crítica das instituições e políticas aqui discutidas. Não há contradição. Em perspectiva histórica, por vezes, somos capazes de observar que os processos políticos e sociais, que entre outras coisas dão conta das instituições de Estado, não se resumem a um jogo de soma zero. Pela grande angular da história, somos capazes de observar avanços e melhorias institucionais, mas, ao mesmo tempo, compreender que precisamos, por vezes em caráter de urgência, promover melhorias.
Sendo assim, a vigência de uma perspectiva balanceada e rica dessas instituições e de seus processos decisórios e técnico-políticos permite não apenas termos leituras mais adequadas – e por que não dizer justas – acerca do funcionamento das instituições aqui em exame, mas também podermos desenvolver perspectivas mais argutas, uma vez que aproxima nossas avaliações dos problemas reais. E são a estes que precisamos responder.
Outro ponto que precisamos comentar diz respeito aos limites do nosso empreendimento. Obviamente, o papel e o legado do PNI e das diferentes ações e políticas do Ministério da Saúde são muito amplos, praticamente se confundem com significativa parcela da história contemporânea da saúde no país. Nesse sentido, tivemos que fazer escolhas e estas repousaram justamente sobre algumas questões que compreendemos como estruturantes na construção dessa mesma trajetória. Por “estruturantes” queremos chamar a atenção tanto para ações e políticas que tiveram resultados considerados importantes, mais uma vez, no enfrentamento dos problemas reais, como também para melhorias institucionais que representaram passos adiante e que, ao se institucionalizarem, repercutem nos passos seguintes. Ou seja, nos interessaram, em particular, as questões com implicações mais duradouras nesta e para esta mesma trajetória.
Por fim, retomando a menção à dimensão crítica dos textos, precisamos considerar que o clima festivo que cerca esta série não supõe que essas trajetórias institucionais tenham sido lineares e ascendentes, no sentido de que caminhamos sempre para o melhor das instituições aqui examinadas. Na prática, precisamos reconhecer que nem sempre o Ministério da Saúde, por exemplo, cumpriu o papel de “mocinho” ao longo da história. Um período tão longo, marcado por diferentes institucionalidades e pela hegemonia de distintos interesses e personagens, sinaliza também para as disputas em torno do comando das burocracias públicas da saúde. Diferentes comandos, distintos projetos. A este respeito basta lembrarmos, nos primeiros anos da década de 1970, do chamado Plano Leonel Miranda, cuja proposta era promover uma radical privatização da saúde no país, de modo a atender interesses outros que não os do povo brasileiro. Plano abortado graças às múltiplas resistências institucionais e sociais que manifestaram posições contrárias (Almeida, 2006).
Mais recentemente, no quadro da pandemia de covid-19, portanto, ainda muito vivo em nossas memórias, fomos testemunhas das posições, para dizer o mínimo, controversas da pasta da Saúde com relação às medidas de enfrentamento da pandemia. O PNI, até então consagrado em termos internacionais, se viu frontalmente ameaçado em sua capacidade de produzir respostas aos problemas sanitários, justamente em um momento em que tanto precisamos dele (Brandão, Mendonça, Souza, 2023).
Mas a roda da história não economiza voltas. Ainda que parte dos problemas de longa data continuem, e que as ameaças políticas mais recentes não estejam de todo superadas, vivemos tempos de esperança. Pela primeira vez na história uma mulher assume a liderança da pasta da Saúde, um quadro que sai desta casa, com profunda expertise e experiência institucional, e com reconhecida liderança e capacidade para não só reconstruir as bases institucionais recentemente abaladas, mas, sobretudo, para fazer avançar, a partir do Ministério da Saúde – em vivas conexões com outras organizações e a sociedade –, a construção de um sistema único de saúde. Algo sobre o que os historiadores e demais analistas da nossa geração e das que virão certamente se debruçarão. Como disse um poeta, o tempo não para.
*Carlos Henrique Assunção Paiva é pesquisador do Observatório História e Saúde (Depes/COC/Fiocruz) e professor do PPGHCS/COC/Fiocruz.
Referências:
ALMEIDA, Célia. Comentário: política e planejamento: o Plano de Saúde Leonel Miranda. Revista de Saúde Pública, v. 40, n. 3, p. 381-385, 2006.
BRANDÃO, Celmário Castro; MENDONÇA, Ana Valéria Machado; SOUZA, Maria Fátima de. O Ministério da Saúde e a gestão do enfrentamento à pandemia de Covid-19 no Brasil. Saúde em Debate, v. 47, n. 137, p. 58-75, 2023.
COHN, Amélia. Notas sobre Estado, políticas públicas e saúde. In: Gerschman, Silvia; Vianna, Maria Lucia Werneck (org.). A miragem da pós-modernidade: democracia e políticas sociais no contexto da globalização. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1997. p. 101-114.
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