22/03/2024
Ricardo Valverde (Agência Fiocruz de Notícias)
O Centro de Informação em Saúde Silvestre e o Sistema de Informação em Saúde Silvestre (Siss-Geo) da Fiocruz, plataforma desenvolvida para o monitoramento da fauna silvestre e a vigilância de emergências de zoonoses e conservação da biodiversidade e que tem como base a participação da sociedade e órgãos parceiros, completam dez anos neste mês de março. O evento para comemorar esta primeira década será realizado nesta terça-feira (26/3), das 8h30 às 12h30,no auditório do Museu da Vida Fiocruz, no Rio de Janeiro, com transmissão online pelo canal da Distribuidora VídeoSaúde. No mesmo dia ocorrerá a premiação dos 10+ Colaboradores de 2023, que reconhece anualmente a participação da sociedade e de órgãos e unidades da saúde, ambiente e outros no monitoramento de animais silvestres. Conheça os vencedores de 2023 em cada categoria.
A coordenadora do Siss-Geo, Marcia Chame, em trabalho de campo na Floresta da Tijuca (foto: Siss-Geo)
A bióloga e pesquisadora Marcia Chame, coordenadora do Siss-Geo, explica que a ferramenta se desenvolve a partir da ciência cidadã, pois conta com a participação das pessoas se envolvam no monitoramento dos animais. Para ela, o Siss-Geo permite que a sociedade conheça a relação entre a saúde silvestre e a saúde humana e assim repense a forma de viver. Isso gera maior consciência para a conservação da biodiversidade, que pode trazer melhorias para a saúde e modificar o processo de transmissão de doenças, e também conhecimento sobre os impactos e a degradação ambiental que fazem com que algumas doenças reapareçam.
Marcia acaba de voltar da oficina de cinco dias em Manaus, de 11 a 15 de março, na qual ela e sua equipe participaram do treinamento, da capacitação e da formação de multiplicadores para a vigilância de epizootias e a utilização do Siss-Geo. “Ações como essa são essenciais para fortalecer a vigilância epidemiológica de doenças como a febre amarela, identificada a partir de epizootias de primatas não humanos, a febre do Nilo Ocidental, detectada por meio de epizootias em equídeos e aves silvestres, e a febre oropouche, por meio da vigilância de primatas não humanos, aves silvestres e xenarthras (bichos-preguiça, tamanduás e tatus)”. Ela acrescenta que o objetivo da oficina foi o de ampliar a sensibilidade da vigilância em eventos epidemiológicos relevantes envolvendo animais, utilizando-os como estratégia sentinela para a detecção de novos focos e para subsidiar a análise de risco em nível regional e a adoção de medidas de prevenção e controle.
O Siss-Geo conta hoje com uma rede de 12.844 colaboradores, 174 especialistas e 396 instituições de todos os estados brasileiros e pessoas dos mais diversos perfis, originários de comunidades tradicionais, indígenas, rurais e urbanas, órgãos públicos, privados, ONGs e voluntariados. Os premiados são selecionados por critérios pré-estabelecidos que elencam o número de registros enviados ao sistema, distribuídos em cinco categorias: Colaboradores Voluntários; Mulheres Colaboradoras; Profissionais de Saúde, Ambiente e Outros Órgãos; Unidades/Equipes de Saúde, Ambiente e Outros Órgãos; e Unidades de Conservação. A premiação, que ocorre desde 2017, vai reconhecer também a categoria especial Embaixador(a) do Siss-Geo, para aqueles que ampliam o uso da ferramenta nas suas atividades e territórios e acumularam ao longo dos anos mais de mil registros no sistema. Destaque também será dado aos especialistas que apoiam a identificação taxonômica dos animais.
O Siss-Geo possibilita que a sociedade seja agente fundamental do monitoramento da saúde dos animais silvestres, além de colaborar com a vigilância de doenças cujos agentes infecciosos circulam entre animais e humanos – as zoonoses, além de outros agravos. Com o uso do aplicativo do Siss-Geo, disponível gratuitamente para os modelos mais simples de smartphones, qualquer pessoa pode se tornar um colaborador do monitoramento da fauna, fotografar e reportar as condições físicas dos animais e do ambiente, dando celeridade, eficácia, economia de recursos e qualidade de dados para tomada de decisão. O conjunto de dados registrados é processado por recursos computacionais de alto desempenho e, quando detecta animais mortos ou doentes, gera alertas automáticos e em tempo real aos gestores dos órgãos responsáveis. Os registros são auditados e validados taxonomicamente e são usados para a geração de modelos de favorabilidade para ocorrência de zoonoses nos municípios brasileiros.
Indígenas recebem capacitação feita pelo pesquisador Eduardo Krempser para o uso da ferramenta na Amazônia (foto: Siss-Geo)Os registros do Siss-Geo são abertos e disponibiliza a sua base de dados para gestores de saúde, ambientais, pesquisadores e instituições. O registro de animais vivos e saudáveis são importantes para a identificação dos fatores que contribuem ou não para a conservação da biodiversidade e a qualidade de vida. O Siss-Geo pode ser utilizado em qualquer parte do país e a localidade da observação, data e hora são registradas automaticamente por satélite. Todas as informações podem ser armazenadas offline e quando o colaborador entra na área com sinal de telefonia ou wi-fi, o aplicativo informa que encontrou a rede e solicita o envio dos dados. As fotografias podem ser selecionadas em diversos tamanhos, para que seja possível o envio de acordo com a qualidade de rede disponível e também sem gerar custos para o colaborador. O aplicativo do Siss-Geo pode ser obtido no Google Play, na Apple Store e na plataforma Gov.br. A ferramenta é uma tecnologia social certificada pela Fundação Banco do Brasil.
A aplicação e o uso do Siss-Geo por profissionais de saúde envolvidos no plano de prevenção e controle da febre amarela no sul do Brasil possibilitou a validação dos corredores de transmissão do vírus e a identificação de áreas prioritárias para vacinação. Isso reduziu de modo drástico as mortes humanas e consolidou dados importantes para a avaliação do impacto da doença nas espécies de primatas não humanos. Marcia Chame observa que “no Brasil, aprendemos que os primatas são os primeiros a sofrer, antes dos humanos, os efeitos da febre amarela. Então, passamos a monitorar esse indicador como um alerta importante, que nos ajudou a criar modelos de previsão projetando as hipóteses de dispersão e, com isso, foi possível subsidiar decisões sobre o processo de vacinação”.
Em suas andanças pelo Brasil, difundindo o uso da ferramenta por meio das oficinas, Marcia e equipe estiveram em localidades afastadas e de condições muito precárias. De 2015 a 2017 o grupo desenvolveu um trabalho com 75 comunidades da Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns, no Pará – a algumas delas se chega após uma viagem de oito dias de barco. Na região ocorreu um choque de realidade quando ela e a equipe constataram que os celulares não funcionavam nas mãos das pessoas. “Percebemos que a pele grossa das pessoas daquela região não funciona na tela do celular. Então f0i necessário reformular tudo, mudando os botões do aplicativo e tornando a tela mais sensível, para que as pessoas possam usar. E as palavras são simples e fáceis de entender. Este é também um trabalho de inclusão digital”.
Origens
Marcia lembra que o embrião do que viria a ser o Siss-Geo surgiu em 1997, quando ocorreu o episódio da morte de macacos por febre amarela na Serra da Capivara, no Piauí. Pessoas foram vacinadas e o parque fechado, mas só seis meses depois os resultados dos diagnósticos mostraram que os animais não morreram de febre amarela. “Perdemos a oportunidade de saber qual era a doença dos macacos e se era uma questão importante para a saúde humana. O monitoramento dos animais, na época, era feito com o auxílio dos guias do parque, mas com precariedade. A partir dali um projeto foi desenvolvido por seis anos e, durante aquele tempo, ficou claro que mesmo pessoas com baixa escolaridade podem ajudar no monitoramento dos animais, desde que tenham uma ferramenta acessível e fácil de ser utilizada”, afirma.
Rapaz aprende a usar o aplicativo em comunidade no sul da Bahia (foto: Siss-Geo)
Mais tarde, em 2005, ela foi convidada pelo Ministério do Meio Ambiente, para participar do projeto de transversalização da conservação da biodiversidade entre os diversos setores. Dentro da área da saúde, foi proposto o monitoramento da saúde silvestre e sua relação com a saúde humana, o que já era feito na Fiocruz desde os tempos de Oswaldo Cruz e Carlos Chagas, embora não de maneira integrada. Na época, o que era algo extremamente inovador, o objetivo era criar uma ferramenta que pudesse ser utilizada também pela sociedade. “Hoje tudo parece bem óbvio, mas naquele momento não era, e envolvia riscos de não funcionar. Muitos diziam que o uso do celular não daria certo, entre outras questões. Os ex-presidentes da Fiocruz Paulo Buss e Paulo Gadelha apostaram na ideia e nos deram muito incentivo, além de recebermos apoios importantes no Ministério do Meio Ambiente e no Banco Mundial”. Marcia recorda que uma parceria fundamental para o êxito do projeto foi a estabelecida com o Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC), o que viabilizou a ferramenta. Segundo ela, os presidentes da Fiocruz que vieram na sequência, Nísia Trindade Lima e Mario Moreira, deram amplo apoio ao Siss-Geo.
A partir do lançamento do Siss-Geo, em 2014, o grupo começou a promover oficinas por todo o Brasil, para levar a ferramenta aos agentes de saúde, às equipes dos parques nacionais e à sociedade em geral. Quando houve o surto de febre amarela de 2017, na Região Sudeste, e os macacos começaram a morrer, ocorreu uma grande aproximação com a Coordenação-Geral de Arboviroses do Ministério da Saúde, dando um impulso relevante à ferramenta.
“Naquela ocasião, quando o surto começou a caminhar para os estados do Sul, foi criado um grande grupo de trabalho para modelagem de febre amarela, com o intuito de saber por onde a febre amarela chegaria e assim proceder a vacinação das pessoas, em operação conjunta com as secretarias de Saúde do Paraná, de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul. Houve um grande treinamento dos profissionais de saúde e foi possível saber onde os macacos estavam morrendo, validar os corredores de transmissão, com a metodologia desenvolvida pela Sucen/SP, e identificar as áreas de risco, dando tempo aos estados para vacinarem as pessoas, pois sabíamos em que localidades o vírus chegaria nos meses seguintes. O resultado foi uma redução de mais de 90% no número de mortes humanas por febre amarela”, destaca a pesquisadora. Para ela, aquele foi o momento em que ficou comprovada a efetividade do Siss-Geo.
O sucesso da ferramenta levou à expansão do Siss-Geo pelo Brasil. E em 2020, quando uma nova variante do vírus observada no Tocantins chegou a Goiás e ao Distrito Federal, as pessoas foram vacinadas e o número de humanos mortos caiu imensamente. O trabalho também foi feito no Nordeste e agora está chegando aos estados amazônicos, onde as pessoas já eram vacinadas mas onde existem lacunas por falta de notificação sobre os macacos. Pelos bons resultados o SISS-Geo passou a ser utilizado na vigilância de outros vírus, como o da febre do Nilo.
O que vem por aí
Marcia diz que em breve haverá novidades na ferramenta. “Agora estamos desenvolvendo o módulo SUS, que está sendo usado pelos profissionais de saúde, centros de zoonoses e órgãos que atuam na vigilância. O módulo SUS permite que o gestor receba todos os alertas e use a base de dados. Este será um marco importante na vigilância em saúde no Brasil, dando mais acurácia aos modelos de previsão”, adianta Marcia, que está na Fiocruz desde 1980 e é a única a fazer parte do Siss-Geo desde o início da ferramenta.
O aplicativo do Siss-Geo pode ser obtido no Google Play, na Apple Store e na plataforma Gov.br (foto: Siss-Geo)
A pesquisadora afirma que um novo desafio, junto com o Ministério da Saúde, será integrar no Siss-Geo as zoonoses urbanas, ou seja, as doenças dos gatos e cachorros. “Será um grande desafio, já que o Brasil tem milhões de animais domésticos. Vamos precisar conscientizar as pessoas para que colaborem, dentro do conceito de ciência cidadã”.
A gestão do Siss-Geo é feita com uma equipe enxuta. No total, são 15 profissionais, das áreas da biologia, da ciência social, da comunicação, da geografia e da ciência da computação. Entre os parceiros externos estão, além das coordenações-gerais de Arboviroses e de Zoonoses do MS, a Embrapa Pantanal, a Universidade Estadual do Mato Grosso, a Universidade Federal de Viçosa, o Instituto Caminhos da Mata Atlântica e o Imperial College, de Londres.