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27/08/2018

Evento relembra conferência marco para direitos reprodutivos

Julia Dias (Agência Fiocruz de Notícias)


"Era uma vez um momento político internacional da maior importância, que estava acontecendo em escritórios centrais da ONU, em Nova York, e cujo desdobramento seria muito distante do Brasil, no Cairo, no Egito". Foi assim que Jacqueline Pitanguy, feminista histórica e coordenadora da Cidadania, Estudos, Pesquisa, Informação e Ação (Cepia), apresentou o contexto que antecedeu a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento das Nações Unidas (CIPD), conhecida como Cairo 94. Apesar de parecer distante da realidade e do cotidiano brasileiros, a organização e a luta das mulheres brasileiras e de outras partes do mundo foram essenciais nesse contexto para que suas pautas e reivindicações fossem incluídas no documento final da conferência, o que trouxe consequências para as lutas de mulheres em todo mundo. 

Realizada na Fiocruz, mesa 'Nossas Vozes Resistem' debateu 25 anos da Conferência Internacional de População e Desenvolvimento (CIPD-94) (foto: Peter Ilicciev)

 

"Cairo mudou paradigmas e introduziu a lógica de direitos na agenda de população”, explica Richarlls Martins, coordenador da Rede Brasileira de População e Desenvolvimento (Rebrapd). Foi a primeira vez que um documento da ONU tratou da discussão sobre direitos reprodutivos e saúde reprodutiva. Foi também a primeira vez que se nomeou sujeitos e grupos populacionais específicos que demandam políticas públicas específicas, como mulheres, população negra, pessoas vivendo com HIV/Aids e indígenas. 

“Até a Conferência do Cairo, em 94, a temática de população era atrelada a uma perspectiva demográfica com base nos componentes numéricos. A composição de direitos humanos não tinha centralidade”, completa. Isso fazia com que a metas de demográficas tivessem como lógica políticas coercitivas, sejam controlistas ou natalistas, o que colocava sobre o corpo da mulher uma lógica de opressão, e de não emancipação e direitos. A partir de Cairo, políticas foram desenhadas em todo mundo, como a Lei do Planejamento Familiar no Brasil, em 96.

“Até a Conferência do Cairo, em 94, a temática de população era atrelada a uma perspectiva demográfica com base nos componentes numéricos. A composição de direitos humanos não tinha centralidade”, afirmou Richarlls Martins, coordenador da Rebrapd (foto: Peter Ilicciev)

 

As falas fizeram parte da mesa Nossas Vozes Resistem: 25 anos da Conferência Internacional de População e Desenvolvimento/CIPD-94 e a construção de uma Agenda Comum de Direitos, que encerrou o evento II Diálogos Brasileiros em População e Desenvolvimento, realizado no Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz) e no campus da Praia Vermelha da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Organizado pela Rebrapd, em parceria com o IFF/Fiocruz, o Cepia, e o Núcleo de Políticas Públicas em Direitos Humanos da UFRJ, e com o apoio do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA Brasil). O evento, que aconteceu entre os dias 20 e 22 de agosto, marcou a preparação para os 25 anos da Conferência de Cairo. Em 2019, mais cinco seminários preparatórios nas cinco regiões do brasil e um Brasília estão previstos.

"A ideia é mobilizar e envolver a população brasileira para o tema", destaca Richarlls. Em setembro de 2019, a Assembleia Geral das Nações Unidas terá uma sessão especial Cairo+25. Também presente na mesa, a presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima, defendeu a necessidade de criação de agendas comuns. "A agenda progressista está marcada muito positivamente pelo tema das identidades, mas precisamos lutar para encontrar convergências e pontos consensuais. Não unanimidades, mas consensos", afirmou, destacando a importância do envolvimento da sociedade civil nessa pauta.

"A agenda progressista está marcada muito positivamente pelo tema das identidades, mas precisamos lutar para encontrar convergências e pontos consensuais. Não unanimidades, mas consensos", destacou a presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima (foto: Peter Ilicciev)

 

O representante da Unfpa no Brasil, Jaime Nadal, concorda. “Esta é uma agenda que tem avançado muito nos últimos 25 anos. Mas justamente por isso, tem aumentado a oposição”. Para ele, a solução é reposicionar o debate, aumentando o papel e a mobilização da sociedade civil, neste momento em que “se perde o fôlego no contexto internacional”. 

A Agenda 2030 da ONU foi lembrada como arcabouço de defesa de direitos que tem potencial para pressionar por respostas. Outros pontos destacados como prioritários pelos participantes, além das questões dos direitos reprodutivos, foram a questão da juventude, a questão da zika relacionada aos direitos das mulheres, o encarceramento em massa e o diálogo com populações religiosas, no momento em que o fundamentalismo cresce no Brasil e no mundo. 

Sobre a importância da temática da juventude no Brasil, Richarlls reforçou que nunca tivemos tantos jovens e nunca mais teremos, pois estamos envelhecendo muito rápido. “Está acabando o nosso bônus demográfico. E a gente perdeu nosso bônus demográfico porque a gente ou matou ou prender a nossa juventude negra”, afirmou.

Um dos grupos mais afetados pelas políticas e discussões sobre população, as mulheres negras foram representadas na mesa por Valdecir Nascimento, da Articulação de Mulheres Negras do Brasil. Ela defendeu a necessidade de levar essa agenda além da questão dos direitos reprodutivos. “A discussão sobre população e desenvolvimento fica muito centrada nos direitos reprodutivos, porque fica muito na questão de quem pode viver”, pontuou. Para ela, uma perspectiva neomalthusiana sempre dominou o debate, associando aumento populacional à pobreza, o que acaba tendo como consequência o controle da população negra e, principalmente, dos corpos das mulheres negras.

Francisco Menezes, diretor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), destacou a questão do crescimento da pobreza e da extrema pobreza no Brasil a partir de 2015, após duas décadas em queda. O economista do Ibase, que também é consultor de Políticas da ActionAid no Brasil e membro do Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para Agenda 2030, foi o primeiro a apontar que o país voltaria ao mapa da fome. A grande novidade em relação a momentos anteriores é que nessa onda de crescimento da população pobre pela primeira vez a extrema pobreza é maior que a pobreza. Para ele, isto se relaciona com a radicalização do neoliberalismo e o crescimento do desemprego, que é maior entre os mais pobres e deixa famílias sem nenhuma renda. 53% dos que vivem em extrema pobreza estão desempregados, enquanto a média nacional é de 12,6%.

Ao final dos três dias de evento, os participantes produziram um documento que será entregue a todos os presidenciáveis. Acesse aqui o documento.

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