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03/11/2015

Ganhador do Nobel de Medicina 2011 visita a Fundação e fala sobre sua descoberta

Danielle Monteiro (CCS/Fiocruz) e Anna Carolina Düppre (Olimpíada Brasileira de Saúde e Meio Ambiente/Fiocruz)


O Nobel de Medicina de 2011, Bruce Beutler, proferiu palestra (28/10) na Fiocruz sobre a descoberta que lhe rendeu a premiação. Junto com sua equipe, ele desenvolveu técnicas para detecção de mutações que afetam características de organismos. Usando essas técnicas, os pesquisadores já detectaram centenas de genes que contribuem com a defesa do sistema imunológico. A equipe do Beutler também estudou muitas outras funções biológicas, tais como manter níveis de glicose constantes, regulação da massa corpórea e reparo seguido de lesão.

O principal objetivo de Beutler é a identificação da maioria das proteínas essenciais para estes processos biológicos, muitos deles anormais em doenças. Nascido em 1957, em Chicago, Beutler é professor de genética e imunologia no The Scripps Research Institute (Instituto de Pesquisa Scripps) na cidade de La Jolla, estado da Califórnia (EUA). Em entrevista à Agência Fiocruz de Notícias (AFN), ele falou sobre a importância de sua descoberta para o tratamento de doenças.

Beutler fala sobre os desafios no tratamento de doenças infecciosas em todo o mundo (foto: Peter Ilicciev)
 

AFN: O senhor poderia falar sobre sua descoberta e o impacto dela para o desenvolvimento de novos tratamentos contra doenças infeciosas?

Bruce Beutler: Se você contrai uma infecção por uma bactéria, por exemplo, você começa a ter calafrio, pode ter dor de cabeça e náuseas. Com um número suficiente de bactérias, você pode desmaiar, sua pressão sanguínea baixar ou ter algo como uma septicemia. A pergunta é: como você reconhece a bactéria e como seu sistema imunológico a reconhece rapidamente nos primeiros minutos depois da inoculação (introdução da bactéria no organismo)? O mesmo processo ocorre se você é infectado naturalmente quando, por exemplo, você cai e machuca seu joelho e a bactéria entra em seu tecido. Suas células a reconhecem e se preparam para atacá-la imediatamente. Nós descobrimos os receptores que permitem que o sistema imunológico fique atento à infecção nos primeiros minutos. Esses receptores são chamados de TLR (Toll-like receptor). Essa é uma família de dez receptores em humanos. Cada um deles reconhece algo bem diferente em relação à bactéria e a ‘assinaturas’ de infecção, ‘assinaturas’ de moléculas. Uma delas se chama LPS. Grande parte das bactérias tem a LPS, provavelmente metade das bactérias no mundo. E se você for inoculado com ela, esses receptores vão informar ao seu sistema imunológico que há uma infecção e, então, ele vai passar a reagir e, consequentemente, haverá uma reposta inflamatória. É por isso que você acaba tendo todos aqueles sintomas. Mas isso também salva sua vida, na maior parte das vezes. Então essa é a natureza da nossa descoberta. 

O que ela pode fazer, falando de forma prática? Essa descoberta poderia ser usada, de certa forma, para a produção de vacinas, de mecanismos que estimulem o sistema imunológico e a resposta dos anticorpos. Ela também pode ser usada para entender nossa imunidade, pois quando você tem uma doença auto imune, você tem inflamação e ninguém ainda sabe o que realmente a provoca. Acreditamos que isso possa ter a ver com um desses receptores, mas isso ainda é uma dúvida. Essa descoberta já tem sido aplicada agora. Por exemplo, em algumas das drogas atualmente usadas para tratar verrugas. Essas drogas ativam os TLR, e elas têm funcionado até então. Há outras drogas que ativam os TLR sendo desenvolvidas e, em poucos anos, haverá mais outras e, então, teremos que descobrir qual o melhor uso para cada uma delas: se elas poderão tratar verrugas ou, em alguns casos, alguns tipos de câncer. Algumas drogas ativam os TLR e outras podem bloqueá-los. Isso poderá ocorrer daqui a poucos anos.

AFN: A Fiocruz desenvolve muitas pesquisas em malária e dengue. Qual o atual panorama no campo do tratamento de doenças infecciosas?

Beutler: Essas doenças são muito desafiantes no que diz respeito ao desenvolvimento de vacinas. Em relação à dengue, uma das vacinas que foi experimentada fez a doença ficar pior. No caso da malária, ela simplesmente é resistente a todas as tentativas de reestabelecer o sistema imunológico. Isso não quer dizer que é impossível, mas, claramente, é difícil. E requer alguns ‘truques’ que nós simplesmente não conhecemos até agora. E nossa descoberta poderia ser aplicada nessas doenças e, talvez, em outras.

AFN: Quais são os principais desafios no que diz respeito ao campo de doenças infeciosas no mundo?

Beutler: Há tantos desafios. Geralmente mencionamos a Aids como a doença número um e, de certa forma, ela ainda é. Ela tem sido controlada, por conta dos importantes avanços no tratamento da doença, que é milagroso de alguma forma. Se a Aids tivesse chegado anos antes, provavelmente grande parte da população mundial teria sido extinta e teria havido uma catástrofe global. Mas, ao contrário, nós conseguimos lidar com isso. Podemos dizer que a terapia antimocrobiana em geral conseguiu lidar com muitas doenças infecciosas. Mas isso vai durar para sempre? Apesar de termos descoberto o antibiótico, por exemplo, nada pode garantir que o problema está resolvido para sempre. Há muitas bactérias resistentes a medicamentos surgindo e nossos filhos e netos não têm o tipo de proteção que eu, por exemplo, tive ao longo de minha vida. Há recém nascidos, por exemplo, que morrem de infecções. Isso é muito comum em algumas partes do mundo, como a África. Em todo o caso, o desafio é ‘estarmos à frente’ dos micróbios, esse será sempre o jogo que jogaremos. E eles sempre chegarão com formas criativas de derrotar nosso ‘armamento antimicrobiano’. É uma luta da qual não podemos desistir. 

AFN: Como o senhor ve o trabalho de uma instituição como a Fiocruz para a formação de jovens cientistas?

Beutler: Entendo a Fiocruz como uma universidade, pois vocês tem estudantes aqui, de graduação e pós-graduação. Fui para a faculdade de medicina não porque amava a medicina clínica (ou clínica médica), mas porque era um modo de aprender sobre os problemas que existem nesse universo. A Fiocruz está aqui no epicentro de várias doenças que são muito raras na América do Norte. É mais fácil entender sobre elas, como se desenvolvem, como tratá-las e suas características. Pode-se dizer que isso é muito conveniente (oportuno), pois aposto que os estudantes da medicina aqui têm contato com esse aspecto da medicina que não estão tão acessíveis na maioria dos outros países do mundo. 

AFN: E essa é uma instituição importante na pesquisa de doenças negligenciadas. 

Beutler: Sim! São chamadas de negligenciadas porque são raras na Europa, na América do Norte e há uma tendência em não considerá-las prioridades por pesquisadores desses países. Aqui, obviamente elas não são negligenciadas, pois vocês têm uma posição dominante aqui em entende-las e enfrenta-las. Estudantes aqui estão trabalhando com uma nova fronteira para a biologia. Estão em posição de entender e enxergar as coisas antes de quaisquer pesquisadores em outras partes do mundo.
 
AFN: Quais são suas impressões sobre o papel do Brasil no cenário científico global?

Beutler: Entendo que o Brasil tem um grande papel a desempenhar. O Brasil é o 5º maior país do mundo em território e população e destina muitos recursos para a educação. Com isso, vocês tem condições de exercer um grande impacto no cenário global da pesquisa. Sei que cada país tem um conjunto de problemas, mas o Brasil tem várias vantagens também. Estar próximo da ocorrência de uma série de doenças infecciosas, ter acesso direto ao problema deveria ser visto como oportunidade. O Brasil é um país já bastante desenvolvido que pode estar na liderança em pesquisas sobre a malária, por exemplo.
 
AFN: Como recebedor de um prêmio tão importante, de que maneira o senhor vê as contribuições que seu trabalho pode fornecer às novas gerações de cientistas no Brasil?

Beutler: Acho que essas contribuições podem ser aplicadas a cientistas em qualquer lugar, não só no Brasil. Todos que estiverem interessados em imunologia e quiserem ir mais longe podem aprender algo sobre o funcionamento do nosso sistema imunológico. É possível termos um entendimento muito mais avançado sobre os mecanismos da imunidade. Agora que conhecemos os receptores, é uma questão de tempo até que olhemos o sistema imunológico mecanicamente, ou seja, como uma pequena máquina interagindo como engrenagens, porque é isso que realmente ele é.  

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