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19/03/2015

Hebe Vessuri discute publicação científica e desenvolvimento na América Latina

Ascom HCS-Manguinhos


Com uma visão ampla da América Latina – nasceu na Argentina, trabalhou na Venezuela e hoje leciona na Universidade Nacional Autônoma do México (Unam) – a antropóloga Hebe Vessuri percebe nos países da região uma tradição de dependência científico-tecnológica externa que, assim como a falta de pesquisa de base industrial e a ausência de vínculos fortes entre o conhecimento científico e a política científica, inibem o desenvolvimento científico dos países. Por outro lado, a formação de pós-graduados está avançando e o campo da pesquisa em Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS) vem se consolidando nas últimas décadas.

Hebe Vessuri afirma que, apesar dos avanços, a participação da América Latina na produção científica mundial ainda é muito baixa (Foto: Divulgação)

 

Membro do Comitê de Ética de Ciência e Tecnologia da Unesco e pesquisadora do Centro de Pesquisas em Geografia Ambiental da Unam, Hebe dedica-se aos estudos sociais da ciência e da tecnologia e à análise de políticas públicas em ciência e ensino superior. Ela esteve no Rio de Janeiro para dar a aula inaugural do ano letivo da Fiocruz, cujo tema foi “Ciência, sociedade e política de publicação”. No mesmo evento, em 10 de março, foi lançado o Portal de Periódicos da Fiocruz, que reúne o conteúdo de sete revistas científicas produzidas em diferentes unidades da Fundação.

Nesta entrevista, publicada originalmente no Blog de HCS-Manguinhos, a professora discute a importância da ciência e tecnologia para as sociedades latino-americanas e o papel das publicações científicas, especialmente de revistas acadêmicas, para o desenvolvimento da ciência e da região.

Você já viveu e trabalhou em vários países da América Latina, incluindo o Brasil. Qual é a importância da ciência e tecnologia para as sociedades latino-americanas?

Hebe Vessuri: Ao longo da história, nossos países receberam tendências, inovações e ideias de âmbito internacional na tentativa de reconstruir e modernizar suas sociedades. Particularmente desde meados do século XX, a influência das agências internacionais e da cooperação multilateral e bilateral foram cruciais para a institucionalização da ciência moderna e educação avançada, não só na América Latina, mas em todas as periferias globais.

O desenvolvimento como ideia-força serviu para promover a ciência e tecnologia e há muitos resultados positivos em diferentes países, como o fortalecimento das comunidades acadêmicas e a multiplicação do número de doutores. No entanto, também é evidente a acentuada falta de interesse dos agentes econômicos nacionais e internacionais no conhecimento que é produzido localmente, mesmo que nos países mais ricos o crescimento da indústria moderna tenha levado a laços mais estreitos entre o ensino superior, ciência e tecnologia.

Nossos países sofrem com a falta de pesquisa industrial, como resultado da ausência ou insuficiência de uma base industrial independente. Nas últimas décadas, muitos contaram com a exportação de matérias-primas para promover suas economias, e apenas alguns conseguiram estimular o surgimento de uma base industrial. Desde os anos 90, algumas economias mais dinâmicas, como Brasil e México, têm reduzido o fosso econômico. No entanto, este catching-up é desigual em termos de como cada país está comprometido com a inovação em relação à sua dimensão econômica e quanto pode gerar em termos de impacto e produtos. Também são ausentes ou muito insuficientes os vínculos entre o conhecimento científico e a política científica. A maneira como a ciência, o conhecimento científico e a pesquisa tenderam a ser institucionalizar na região foi através de várias camadas de conexões internacionais subordinadas entre a ciência e tecnologia, a política e a indústria.

Quais os principais obstáculos ao desenvolvimento?

Hebe Vessuri: No contexto histórico que esbocei, está claro que em países com capacidade insuficiente e instituições políticas e sociais instáveis, a educação superior e a ciência e a tecnologia não conseguiram reduzir as disparidades sociais e econômicas – isto se não contribuíram para o seu aumento. Alguns grupos, institucões e países são ocasionalmente apresentados como histórias exitosas no mundo em desenvolvimento porque os investidores, governos e especialistas precisam de histórias exitosas, e não por indicarem mudanças estruturais positivas e duradouras.

O reconhecimento das oportunidades e talentos perdidos é frequentemente doloroso. O registro histórico de muitos países de fora da OECD (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) nos mostra pesquisadores bem formados que ou abandonaram seus países rumo ao Norte ou se renderam ao aparato elitista conservador de seus países, aceitando o status quo em vez de participar de uma modesta porção de fundos públicos e sem o prestígio de aparecerem como vetores da modernidade.

Para muitos especialistas, o apoio à pesquisa em ciências humanas e sociais é precário na América Latina. Por quê?

Hebe Vessuri: Mais do que se o apoio é precário ou não, estou interessada em explorar as implicações de mudanças de cunho mais profundo, paralelamente à expansão geográfica das ciências sociais e da sua explosão no ensino superior, onde algumas destas disciplinas ocupam grande parte do currículo. E se pode esperar muito mais mudanças. Pressões inesperadas em disciplinas estreitamente relacionadas ao desenvolvimento, como a sociologia, a economia, a ciência política e a antropologia, que eram particularmente relevantea na configuração conceitual de países em desenvolvimento após a Segunda Guerra Mundial, inevitavelmente produzirão novidades.

Nas últimas décadas, burocracias universitárias e de pesquisa começaram a promover o “interdisciplinar”, primeiro nas ciências naturais, e, mais recentemente, no campo das ciências sociais e humanas. Novas agendas de problemas surgem, novas abordagens metodológicas são exploradas e diferentes critérios de avaliação são aplicados.

Nos anos 1990, as ciências sociais entraram em um período de auto-avaliação, preocupadas com uma crise no campo do conhecimento e os desafios colocados pelo século XXI. Em alguns setores, supunha-se que as ciências sociais haviam perdido muito de seu espírito crítico em relação à sua contribuição para a análise dos problemas sociais e culturais. Tornaram-se, na melhor das hipóteses, mais instrumental para a gestão social, e na pior das hipóteses, uma prática trivial de pouca utilidade social. Nas universidades, surgiu uma nova maneira de pensar associada à nova gestão pública. Um discurso que incluía categorias, tais como mercado, marketing, produtividade, competitividade, racionalização, governança, procedimentos e gestão tornou-se mais popular, o que levou a uma homogeneização de conhecimentos em termos ditados por uma visão reducionista unilateral que ignora a possibilidade de uma maior compreensão da variabilidade cultural.

Qual é o papel das publicações científicas, especialmente de revistas acadêmicas, para o desenvolvimento da ciência e da região?

Hebe Vessuri: Acho que as publicações científicas acadêmicas têm um papel importante no desenvolvimento da ciência e da região, especialmente nas ciências sociais e humanas, porque são ferramentas indispensáveis na construção de comunidades científicas dinâmicas, criativas e socialmente responsáveis. Elas poderiam fornecer espaços privilegiados para ventilar ideias, propostas, projetos e visões e representações da sociedade. Mas a forma como o papel de publicações científicas é percebido hoje é diferente, como um resultado do regime dominante de avaliação.

A forma peculiar de definir a qualidade tende a ser cega para questões relacionadas ao desenvolvimento: os rankings, afinal de contas, são utilizados para identificar os campeões; o resto é simplesmente esquecido e negligenciado. Nada contra o desenvolvimento, mas à medida em que ele transforma a qualidade em uma competição para os melhores rankings, introduz-se a competição como “o” instrumento de gestão no sistema global de pesquisa, e o desenvolvimento passa também a definir as regras da competição. Isto leva inexoravelmente à adoção da agenda “internacional” e ao adiamento indefinido da atenção científica aos problemas locais.

A participação da América Latina na produção mundial aparece como sendo muito baixa. Mas estes resultados são o produto de bases de dados internacionais, e não se dá muita atenção aos seus procedimentos de seleção e exclusão. Simplesmente aceitam-se como verdadeiros, sem que se busquem explicações para os maus resultados. Muitas vezes, o baixo investimento em inovação e desenvolvimento é usado como explicação, o que é provavelmente uma parte da resposta, e põe-se a culpa nos cientistas latino-americanos por não participarem da “ciência mainstream”, como se só eles fossem responsáveis por uma situação em que outros fatores são claramente envolvidos. Em particular, a exclusão quase total de revistas latino-americanas de bases de dados internacionais não deveria ser ignorada quando se determina o baixo número de indicadores em questão.

Na América Latina como um todo, por exemplo, a base Scopus tem apenas 726 jornais da região (15% de 4882 listadas no Catálogo de Latindex). Além disso, a barreira da língua impede a possibilidade de que o que é investigado em uma língua nativa da periferia capte o interesse do centro. Por exemplo, apenas 13 dos 113 periódicos mexicanos de ciências sociais credenciados no Padrão de Excelência do Conselho Nacional de Pesquisa Científica do México (Conacyt) por sua alta qualidade são indexados pela Web of Science da Thomson Reuters. O número de revistas científicas do Brasil indexados na WoS aumentou 205% entre 2002 e 2008, e as áreas mais demandadas foram energia alternativa, agricultura e ciências sociais. Mas isso foi conseguido após pressões e iniciativas que revelaram a omissão escandalosa destas bases de dados internacionais.

Qual é a situação dos estudos sociais da ciência e da tecnologia na América Latina?

Hebe Vessuri: Acho que estamos vivendo o seu melhor momento, com a institucionalização do campo do conhecimento em uma extensa área, com uma agenda temática em expansão, tentando explorar a sua especificidade. Recentemente, a Sociedade Latinoamericana de Estudios Sociales de la Ciencia y Tecnología (Esocite) publicou um volume com textos que cobrem uma gama de temas presentes na região ou que contribuem para abrir novas perspectivas em estudos sociais da ciência, da tecnologia e do conhecimento na América Latina (Perspectivas latinoamericanas recientes de los estudios sociales de la ciencia y la tecnología, publicado pela Siglo XXI, México, e editado por Kreimer, Vessuri, Velho e Arellano). Até a década de 1980, o estudo do desenvolvimento científico e tecnológico teve abordagens de inspiração principalmente histórica ou política. Os poucos estudos sociológicos e sócio-históricos buscavam explicar o desenvolvimento das comunidades científicas nacionalmente ou em disciplinas específicas. Após os anos 1980, observou-se uma institucionalização dos estudos sociais da ciência e da tecnologia. A pesquisa começa a se organizar em grupos crescentes de sociologia, história social, antropologia e política científica, bem como a economia da mudança tecnológica e da inovação, e muitos se convergem em espaços comuns de interação e debate.

Em paralelo à institucionalização do campo, foram surgindo vários programas para a formação de novos pesquisadores, especialmente cursos de pós-graduação, que formam mestres e doutores. Destaca-se uma grande diversidade de especialistas: sociólogos, antropólogos e historiadores coexistem com engenheiros, biólogos e físicos, além de vários outros profissionais. Na segunda década dos anos 2000, foi formado um número significativo de jovens em programas de pós-graduação da América Latina, fortalecendo, assim, a pesquisa em estudos sociais da ciência e da tecnologia e oferecendo, em alguns casos – menos do que o esperado, por sinal -, profissionais capacitados para formar quadros no campo das políticas de ciência e tecnologia.

Desde meados dos anos 90, começaram a ser organizados a cada dois anos os Congressos Latino-Americanos de Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia (Jornadas Esocite) e também seminários permanentes, fóruns nacionais e latino-americanos, que incluem cada vez mais pesquisadores e grupos com trajetórias em pesquisa. Desde 2001, também passaram a ocorrer, semestralmente, encontros latino-americanos de pós-graduação em CTS (Ciência, Tecnologia e Sociedade) em anos alternados aos congressos Esocite, com crescente participação.

Há várias décadas existem periódicos dedicados a diversos aspectos da CTS na América Latina. No campo da história da ciência, está a revista Quipu, editada pela Unam, História, Ciências, Saúde – Manguinhos, publicada pela Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, a Revista Brasileira de História da Ciência e, mais recentemente, a Eä Journal, Revista de Humanidades Médicas y Estudios Sociales de la Ciencia y la Tecnología, apoiada pela Associação Argentina para a História da Medicina (Sahime). Em particular, uma revista tem acompanhado o crescimento dos estudos sociais da ciência e tecnologia na região: a Redes, publicada em Buenos Aires pela Universidade Nacional de Quilmes desde 1995, que na prática, funciona como o órgão de comunicação fundamental da atividade formal dos estudos de CTS na América Latina.

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