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04/01/2012

Historiador analisa os discursos e ritos de cura no cangaço

Danielle Monteiro


Final do século 19, Nordeste brasileiro. Em meio à paisagem árida da região, surge um bando de homens e mulheres que fogem do estilo de vida comum e adotam outros modos de viver, ancorados na rebeldia, na fuga, nos saques e na luta. Eram os cangaceiros. Vistos como heróis por alguns e malfeitores por outros, os bandoleiros eram, sobretudo, peritos em táticas de sobrevivência. Diante de frequentes situações de desespero e perigo de vida, seu cotidiano era marcado pela criação de novas alternativas de cura, rezas e superstições. E foi com o intuito de explorar esse campo do saber não legitimado pela medicina, característico do cangaço, que o professor da Universidade Federal de Campina Grande, na Paraíba, Iranilson Buriti de Oliveira, realizou um estudo no qual analisa de que modo eram elaborados os discursos e ritos de cura de participantes do cangaceirismo. Intitulado Artes de curar e modos de viver na geografia do cangaço, o artigo foi publicado na edição de novembro da revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos da Fiocruz.

 

 A análise de práticas de cura no cangaço abre espaço para outros campos de estudo desse fenômeno que marcou o Nordeste, além de proporcionar um mergulho nos saberes populares
A análise de práticas de cura no cangaço abre espaço para outros campos de estudo desse fenômeno que marcou o Nordeste, além de proporcionar um mergulho nos saberes populares

Quando chamados por outros membros do bando, cangaceiros como Lampião, Dadá e Jararaca dispunham frequentemente de uma receita, um diagnóstico para resolver a situação de perigo e dor, assumindo, dessa forma, outras facetas. Tornavam-se, então, curadores, parteiros, cirurgiões, terapeutas e, com isso, afastavam-se da identidade de matadores, violadores e estranguladores, constata o historiador: “O cangaceiro que matava também curava, fazia partos, mezinhas, rezas e bochechos”.

A farmacopeia dos bandoleiros era constituída de medicamentos feitos com base no saber popular. “Os cangaceiros voaram na sabedoria popular, revisitaram as lembranças de outrora, lançaram mão da memória popular”, comenta Oliveira. Dessa forma, era comum o porte de remédios naturais, como fazia a cangaceira Dadá, que, conforme descrito no artigo, levava consigo plantas, mezinhas para aliviar as perturbações, cachaça para suportar as dores, água oxigenada para limpar as feridas e produtos com ação antibactericida para evitar o tétano.

E eram numerosos os canais de recuperação utilizados pelos cangaceiros, revela o artigo. A faringite era curada com chá de formiga e gargarejo com sal, a enterite com chá de cidreira e a cefaleia com folhas de algodão aquecidas ou gengibre. Para piolho, indicavam raspa de coco misturada com enxofre, para epilepsia chá de pena de garça e para difteria banhos de sândalo e alcaçuz. A asma era tratada com banha de ema, as luxações e entorses com emplastro de clara de ovo batida com breu e hemorragias com suco de arnica.

A verminose, muito comum entre os membros do bando em decorrência da pouca higienização, era curada com lavagem de manipueira, utilizada como purgante. Até para a impotência, preocupação já existente na época, havia receita: chá de velame, chá de cabeça de negro em jejum e água de arroz. Quem contraísse doença venérea deveria se tratar com o sumo de doze limões ingerido em jejum após o sol nascer. “O macho com tal doença que fechasse os olhos, pois a sabedoria popular recomendava que o mesmo não deveria olhar para o mato verde nem para mulher. Além disso, deveria fugir dos banhos de rio porque, dizia a crendice, se o fizesse ficaria cego”, conta o historiador.

As condições precárias de higiene e os escassos procedimentos médicos não representavam um entrave para a obtenção de prognósticos muitas vezes corretos. “É o que ocorria, por exemplo, nos casos em que a cor escura do sangue que saía do abdome baleado era interpretada como indicativo de um ferimento grave que, na maioria das vezes, trazia em si o signo da morte”, relata Oliveira.

Em momentos de dor, também faziam uso de superstições, algumas, curiosas, conforme narra o historiador: “Mulher menstruada era impedida de entrar nos quartos de guerra para não arruinar a ferida”. Amuletos e rezas eram usados com a finalidade de ter o “corpo fechado” contra os inimigos ou animais perigosos. E para auxiliar no ato da cura, rezadeiras, beatos e fanáticos por vezes eram invocados. E quando as crendices e simpatias não funcionavam, a que recorriam os cangaceiros? “O jeito era apelar para outras práticas, como a tintura de iodo, a pomada de São Lázaro, para as chagas abertas no meio das brigas, e a banha de baiacu, para amenizar as dores de hérnias”, responde Oliveira.

A análise de práticas de cura no cangaço parece abrir espaço para outros campos de estudo desse fenômeno que marcou o Nordeste, além de proporcionar um mergulho nos saberes populares e em outros modos de invenção de vida. É o que conclui o historiador: “O cotidiano do cangaço surge como espaço privilegiado de produção de táticas de vida, itinerários de cura, invenções de garrafadas, chás, infusões. Elaboração de um cotidiano no qual o sujeito utiliza táticas que se configuram fontes de resistência à geografia da morte, intercalando-se como subterfúgios possíveis de um cotidiano improvisado, sempre em processo de reinvenção e recriação”.

Publicado em 29/12/2011.

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