Início do conteúdo

20/09/2017

Livro da Editora Fiocruz analisa ideias sobre saúde pública no início do século 19

Gustavo Mendelsohn Carvalho (CCS/Fiocruz)


Apoiado em vasta bibliografia, bem como em atas e registros da câmara municipal e textos da imprensa, o doutor em sociologia Rafael Mantovani estudou o papel do higienismo e das ideias sobre a saúde pública em São Paulo, no início do século 19. Os resultados estão no livro Modernizar a Ordem em Nome da Saúde: a São Paulo de militares, pobres e escravos (1805-1840), novo título da coleção História e Saúde da Editora Fiocruz. Na obra, o autor analisa as implicações políticas do pensamento higienista na capital paulista, no momento “em que a limpeza deixou de ser unicamente um elemento que denotava nobreza para assumir uma característica utilitária de preservação da saúde”.

Assim, conforme se depreende das atas da câmara, no período que vai do início do século 19 ao começo do Segundo Reinado, o controle das práticas médicas e da saúde era feito pelos governos locais e gerava lucros políticos. O espaço era medicalizado e objeto de intervenção política. O Estado deveria responsabilizar-se pelo aprimoramento da saúde pública e, de acordo com o pensamento higienista à época, “limpar tudo garantia a saúde”. Um pensamento que já aparecia em Hipócrates, no conceito de miasma, “uma espécie de veneno proveniente de pântanos, umidade, corpos em decomposição”, e que ganharia uma grande importância política no século 19 – por isso, inspiraria reformas higiênicas empreendidas em diversos lugares ao longo daquele século.

Pós-doutorando da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), Mantovani expõe as ideias de autores ingleses, alemães, franceses e portugueses que circulavam entre os médicos brasileiros, mas não necessariamente influenciavam as medidas sanitárias e político-administrativas adotadas pelos governos. Um exemplo disso são as concepções do movimento sanitário francês, que atribuía à pobreza a causa das doenças e defendia uma teoria social da epidemiologia. Usando sua autoridade científica e dados estatísticos, os médicos dessa corrente procuravam demostrar que, para melhorar a saúde da população, eram necessários salários maiores, menos horas de trabalho e o fim do trabalho infantil.

No entanto, se essas ideias chegaram a inspirar algum médico ou político no Brasil de então - com a economia baseada no lema “pão, pau e pano” para o trabalhador escravo -, foram logo abandonadas. “Desde o início, a saúde pública no Brasil deu mais importância aos lugares do que às pessoas que neles viviam”, diz o autor. Ele descreve as relações entre autoridades públicas e os grupos populacionais – miseráveis, prostitutas, escravos – que eram considerados “culpados” pelo ambiente insalubre da cidade e pelas doenças que acometiam os paulistanos. Uma câmara municipal militarizada era responsável pela saúde pública, coagindo e castigando aqueles que ameaçavam o bem-estar do restante da população.

Eram presos e escravos que executavam os serviços necessários para “aformosear” e tornar saudáveis os espaços públicos: recolher o lixo, secar os pântanos, limpar as ruas. Esse convívio imposto a homens já submetidos às duras condições de trabalho forçado, público ou privado, contribuía para a disseminação de doenças contagiosas comuns naquela época, como sarampo, varíola e lepra. Uma consequência que poderia ser considerada contraditória, mas que, somada à subnutrição contínua dos pobres, revela que saúde pública em São Paulo (e no Rio de Janeiro) passava por inviabilizar a longevidade e excluir, quando não eliminar, esta parcela da população, junto com a sujeira e os miasmas.

Em suas considerações finais, Mantovani indica que, dois séculos depois, nossa sociedade mantém laços nada dignificantes com a da época analisada em sua pesquisa. Se a Guarda Nacional de então garantia as determinações das autoridades sanitárias com violência, morte e desprezo às necessidades individuais, hoje temos uma polícia militarizada exercendo funções semelhantes. A repressão era “a forma de manter o pobre e o escravo em seus respectivos lugares”, da mesma forma que, na atualidade, o controle das comunidades e do espaço público é mantido pela ameaça permanente de assassinato e prisão da população negra e empobrecida. Essa realidade histórica leva o autor a concluir que, no Brasil, “por mais que a condição do indivíduo seja adversa, o Estado sempre pode piorá-la, arruinando-o psíquica, moral e fisicamente”.

Voltar ao topo Voltar