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13/05/2016

Livro mostra crescente processo de medicalização da gestação entre os índios Munduruku

Fiocruz Amazonas


Foi lançado recentemente pela editora Paralelo 15 e agraciado com o 4º Prêmio da ABA-GIZ 2014 o livro A cosmopolítica da gestação, do parto e do pós-parto: práticas de autoatenção e processo de medicalização entre os índios Munduruku, da pesquisadora da Fiocruz Amazonas Raquel Dias-Scopel. Fruto de uma pesquisa de doutorado com abordagem pautada na antropologia da saúde, a obra apresenta a etnografia das práticas de autoatenção relativas à gestação, ao parto e ao pós-parto entre os índios Munduruku da Terra Indígena Kwatá-Laranjal, no município de Borba. A pesquisa que resultou na tese foi realizada entre os anos de 2009 e 2011.

Com recursos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam), a pesquisa de Scopel teve como tema central Gênero e Povos Indígenas na Amazônia e foi realizada dentro do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Após oito meses de pesquisa de campo realizando observação participante, entrevistas, coletas de narrativas e dados secundários, a autora concluiu que há um processo crescente de medicalização da gestação, parto e pós-parto entre as populações indígenas. Esse processo de medicalização tem avançado nas aldeias, apesar das iniciativas dos movimentos sociais e governamentais para a humanização do parto e nascimento em âmbito mundial e nacional, e apesar das práticas indígenas Munduruku no trato à gestação, parto e pós-parto continuarem intensamente ativas.

A doutoranda observou que as mulheres Munduruku têm articulado as práticas biomédicas com as práticas indígenas, apesar das diferenças radicais entre o modelo médico oficial e os saberes indígenas de atenção à saúde. Segundo a autora, elas têm participado do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher, por meio das consultas de acompanhamento pré-natal, ao mesmo tempo em que consultam parteiras, pajés e as mulheres mais velhas. Essas mulheres também seguem uma dieta alimentar e cumprirem um conjunto de prescrições e proibições acerca das atividades diárias de trabalho e de lazer.

A etnografia apontou que, para os Munduruku, a gestação, o parto e o pós-parto não são estados fisiológicos peculiares às mulheres apenas, mas, sim, processos de caráter social, que envolvem relações entre homens, mulheres e demais seres que habitam o cosmo. A pesquisa mostrou ainda que, entre os Munduruku, também os homens podem vivenciar a gestação, por meio de diversas mudanças socialmente percebidas em seus corpos e comportamentos, e eles têm um papel muito importante no cumprimento do resguardo de pós-parto, contribuindo para preservar e manter a saúde, a vida e o bem estar da mãe e do recém-nascido.

A etnografia destacou a construção social do corpo do bebê no interior de relações afetivas inerentes ao grupo primário, através de esforços coletivos e individuais de cuidado e apoio mútuo. Essas atividades estão inseridas em um campo cosmopolítico, cujo contexto histórico, geográfico e social é caracterizado pela pluralidade médica, pelas relações cosmográficas e inter-étnicas, as quais comportam subjetividades e intencionalidades diversas.

A tese contribui para reflexão crítica sobre o princípio da “atenção diferenciada” preconizado na Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas do Ministério da Saúde, lançada em 2002. Scopel sublinha que a “atenção diferenciada” é um campo social ainda em construção. Se, por um lado, a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas prevê em seu escopo uma “atenção diferenciada”, por outro, a biomedicina alopática está em processo contínuo de expansão mundial. Isso resultaria em tensão entre princípios e projetos contraditórios que deveria ser minimizada por um modelo de atenção sensível às especificidades culturais.

Entretanto, o subsistema de atenção à saúde indígena tem mostrado, ainda, graves dificuldades, desde a falta de recursos financeiros suficientes e problemas operacionais até a excassez de equipes suficientemente capacitadas. Por outro lado, a pesquisa verificou que, no nível das práticas de autoatenção à saúde, as populações indígenas têm articulado os saberes dispares emergentes do contexto de pluralidade médica na tentativa de aumentar a qualidade de vida da população local. Isso ocorre apesar da crescente expansão da medicalização do parto entre os indígenas no Brasil, demonstrando a potencialidade dos saberes locais nos processos de saúde / doença / atenção.

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