06/05/2019
Luiz Felipe Stevanim (Revista Radis)
"Abenção, vô”. Uma criança de oito anos vem tomar a benção de Dileudo Guimarães, 54 anos, assim que ele entra na Escola Municipal São Pedro, no Quilombo Bom Jardim. O estudante é seu neto Diogo, filho de Dilena, servente da escola. A cena se repete por onde ele passa — seja na localidade onde nasceu, nas proximidades do Lago do Maicá, em Santarém, no oeste do Pará, ou nas comunidades vizinhas, entre os Rios Amazonas e Tapajós. Além de seus netos e afilhados, são conhecidos que guardam o costume, por respeito, de tomar a benção dos mais velhos. Na trilha pela mata, que corta o quilombo, Dileudo rememora histórias da terra onde nasceram seus antepassados e narra a luta, no presente, para impedir o avanço da soja e a construção de um complexo portuário nas terras quilombolas.
“Não fomos consultados. Não respeitam nossos direitos”, sentencia em relação ao projeto da Empresa Brasileira de Portos de Santarém (Embraps) para o Lago do Maicá, área até então considerada de preservação ambiental, onde vivem populações quilombolas, indígenas e pescadoras. Dileudo preside há dez anos a Federação das Organizações Quilombolas de Santarém (FOQS), instituição que reúne as 12 comunidades existentes no município: seis delas na várzea, em áreas que margeiam os rios; cinco no Planalto Santareno; e uma urbana. A obra faz parte de um conjunto de empreendimentos na região de Santarém voltados para o escoamento de grãos e minério. O estudo ambiental apresentado pela empresa, em 2013, à Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (Semas) afirma que não foram encontradas “populações tradicionais legalmente reconhecidas” na área.
Nenhuma das 12 comunidades quilombolas de Santarém foi consultada - parte delas tem suas terras às margens do lago e utilizam a pesca como uma de suas principais fontes de sustento. “A comunidade tem que saber o que se pretendefazer dentro dela. Quem vive aqui no quilombo é quem sabe o que é bom para nós e o que não é”, afirma o líder quilombola. Radis visitou quatro dessas comunidades no fimde março. “Até hoje nós não temos nenhuma comunidadetitulada. É um direito que está na Constituição, mas queainda não saiu do papel”, constata Dileudo.
A construção do Porto do Maicá tornou-se um símboloda resistência das comunidades remanescentes de quilombosem Santarém. Depois que a FOQS questionou o estudo ambiental da Embraps, que não respeitou o direito à consultadas comunidades tradicionais, o Ministério Público Federal (MPF) e Estadual (MPE-PA) ingressaram com uma ação civilpública na Justiça pedindo a suspensão do licenciamento do complexo portuário. Em abril de 2016, a Justiça Federalconcedeu liminar que suspendeu a obra até que fossepromovida consulta prévia, livre e informada às comunidades quilombolas e povos tradicionais da região. “Quem eles consultaram? Quem deu essa autorização para eles?”, questiona Claudiana Lírio, representante dos quilombolas no Conselho Municipal de Saúde.
Assim nasceu a luta dos quilombos de Santarém para serem ouvidos e respeitados em qualquer decisão queenvolva seus direitos ou que afete suas vidas e suas terras.“As populações não são inseridas no debate, desde o início até o fim das obras. A ideia é que, antes de pensar os grandes empreendimentos ou qualquer medida que possa afetá-los, eles sejam escutados”, aponta Ciro Brito, advogado popular daTerra de Direitos, organização de direitos humanos que prestaassessoria jurídica aos quilombolas. “Fomos de comunidadeem comunidade, ouvindo o nosso povo, falando do porto esobre os prejuízos que ele vai trazer para nós”, afirma Dileudo.
Na contramão da decisão da Justiça de ouvir as comunidades, a Câmara Municipal de Santarém aprovou e o prefeito Nélio Aguiar (DEM) assinou, em dezembro de 2018, o novo Plano Diretor do município, que ignora a participação das comunidades tradicionais e converte a região do Maicá em áreade exploração portuária. Esse é mais um episódio que mostrao avanço do agronegócio, da mineração e de grandes empreendimentossobre os quilombos - o que coloca em xeque nãoapenas os direitos e a identidade dessas populações, mas ameaçatambém a preservação ambiental. Uma frase de Dileudos intetiza a luta dos quilombolas pela liberdade de viver emsuas terras: “Nós precisamos ter nossos direitos respeitados.”
“Repare se você vê alguma árvore em pé onde se planta soja”. A frase de Dileudo é uma constatação que descreve a paisagem no percurso de Santarém até o Quilombo Bom Jardim - a cerca de 22 quilômetros da cidade. Da estrada, o que se a vista são campos e mais campos de soja, que se expandem pelo Planalto Santareno. O entorno começa a mudar nas proximidades dos quilombos: áreas de floresta, igarapés, casas simples na beira da estrada, plantio de hortaliças, crianças, campos de futebol. “Quem acaba com a mata é o sojeiro [plantador de soja]”, aponta o líder quilombola, ao ressaltar que o modo de vida dos povos tradicionais respeita e coexiste com a floresta.
A fonte de sustento dos quilombos vem da natureza: o pescado no Lago do Maicá, o extrativismo, como o cupuaçu e o cumaru, e a agricultura familiar, com o cultivo de milho, mandioca, jerimum (abóbora), melancia, banana. “Nós temos a terra como mãe. Tudo que a gente precisa para sobreviver se tira dela. A terra é vida”, ressalta. Como habitam em áreas ainda preservadas, com abundância de água, os quilombolas precisam resistir aos interesses cada vez mais presentes do agronegócio. O líder conta que denunciaram à Justiça a queima da castanheira pelos sojeiros. “Por que a Justiça até hoje não fez nada? Não valorizam nossos territórios e a nossa luta”, critica.
Cansados de esperar pela atenção do poder público, os quilombos de Santarém decidiram se organizar e, por meio da federação que reúne as 12 comunidades, construíram o chamado Protocolo de Consulta Quilombola, um documento que mostra como eles devem ser consultados, para qualquer projeto ou atividade que ocorra em seus territórios. “Quem tem que lutar por nós somos nós mesmos, porque nós é que conhecemos a nossa luta”, resume Dileudo. O Protocolo de Consulta, construído por representantes de todas as comunidades, pretende “mostrar que nós existimos e que não aceitamos qualquer empreendimento sem que sejamos previamente consultados”, diz o texto. O documento se baseia no direito à consulta prévia, livre e informada, garantido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que o Brasil assina.
Com base nessa mesma convenção foi que a Justiça Federal concedeu liminar, em 2016, a pedido do MPF e do MPE-PA, suspendendo o licenciamento das obras do Porto do Maicá, até que as comunidades fossem consultadas e tivessem sua decisão respeitada. “O Protocolo de Consulta não serve só para essa questão do porto, mas para qualquer coisa que se pense em fazer em nossas comunidades. A consulta é importante porque é a própria comunidade quem toma suas decisões”, explica o presidente da FOQS. Ameaçados pelo avanço do agronegócio e dos grandes empreendimentos, o Protocolo de Consulta foi um instrumento que os quilombos encontraram para ter sua voz respeitada, ressalta Dileudo.
Essa forma de resistência no presente relembra a luta dos negros escravizados para resistir à escravidão, que deu origem aos quilombos. “Ser quilombola é entender que nós é que trabalhamos pelo crescimento desse país. Em momento algum fomos remunerados. Esse país tem uma dívida histórica conosco”, afirma o líder. A definição legal de “quilombola” encontra respaldo no artigo 68 da Constituição Federal, que reconhece o direito à propriedade definitiva de suas terras aos remanescentes das comunidades de quilombos. Já o Decreto 4.887 de 2003 define que quilombolas são grupos étnico-raciais, segundo critério de autoatribuição, com trajetória histórica ligada à ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão.
O Quilombo Bom Jardim possui mais de 200 anos de história - localiza-se no Planalto Santareno, próximo a outros quilombos, como Tiningu e Murumuru. Surgiu da doação de uma área de terras pelo antigo senhor de escravos, por vontade de sua esposa falecida, como rememora Dileudo. Além das comunidades formadas como forma de resistência à escravidão, outras se constituíram por meio da doação de terras em razão de serviços prestados - seja de trabalho braçal, religioso ou de guerra - e foram chamadas de “terras de preto”, “mocambos” ou “terras de santo”, como explica o Guia de Políticas Públicas para Populações Quilombolas, de 2013.
Pai de sete filhos e avô de 6 netos, Dileudo faz o percurso de uma comunidade a outra de bicicleta, aos domingos, quando joga bola com conhecidos de outros quilombos. “Nosso time, o Santo Antonio, tem uma história de bons jogadores”. Ele também é catequista há 45 anos na pequena igreja da comunidade, cujo padroeiro é São Pedro. Mesmo com sua história reconhecida, o Quilombo Bom Jardim ainda aguarda a titulação definitiva de suas terras: teve a Portaria de Reconhecimento publicada em 2011, mas até hoje o título não veio.
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