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17/05/2019

Pesquisadora explica conceito de branquitude como privilégio estrutural

Erika Farias (CCS/Fiocruz)


Ser branco é um lugar de conforto. Essa é a ideia que o campo de estudos críticos da branquitude procura transmitir, ao apontar os privilégios simbólicos e materiais dos brancos. “É fundamental entender que esse é um termo que só faz sentido dentro da luta antirracista”, explica uma das mais importantes estudiosas sobre o tema branquitude na atualidade, a pesquisadora em Psicologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Lia Vainer Schucman. O tema, que chegou a ser abordado no início do século 20 por pesquisadores como W.B. Du Bois e Frantz Fanon, ganhou destaque na década de 1990, nos Estados Unidos. Mas foi só nos anos 2000 que o conceito ganhou dimensão acadêmica.

A pesquisadora, uma das convidadas do evento realizado pelo Comitê Pró-Equidade de Gênero e Raça da Fiocruz, com apoio do Sindicato Regional dos Trabalhadores da Fiocruz (Asfoc/PE), realizado no auditório da Fiocruz Pernambuco, no dia 13 de maio, explica que não se trata de colocar novamente o branco como centro do debate. Pelo contrário. “Esse estudo surgiu da percepção de que nos estudos de relações raciais, olhar apenas para as etnias marginalizadas - no caso do Brasil, indígenas e negros - recoloca o branco numa posição de normatividade, enquanto continua insinuando que quem tem raça é o outro”.

Diferentemente do racismo, que acontece na relação entre brancos e negros, a branquitude acontece ao longo da vida da pessoa branca, colocada pela sociedade em um papel de superioridade. Segundo a pesquisadora, há um exercício de manutenção do poder dos brancos. “É próprio da branquitude achar que racismo é problema dos negros. É difícil para as pessoas reconhecerem sua herança branca, entenderem que chegaram a determinado lugar por serem brancas”, explica. 

"A branquitude é sempre um lugar de vantagem estrutural do branco em sociedades estruturadas pelo racismo, ou seja, todas aquelas colonizadas pelos europeus, porque a ideia de superioridade surge ali e se espalha via colonização. Dessa forma, colocam as definições vindas da branquitude como se fossem universais. O que chamamos de História Geral, por exemplo, deveria ser chamada de História branco-europeia". 

Vainer conta que, ao realizar sua pesquisa de doutorado, perguntou para dezenas de pessoas brancas o que ser branco representava para elas. Muitas nunca haviam pensado sobre o assunto. “O próprio privilégio de, aos 40 anos, nunca ter pensado sobre o que é ser branco, é próprio dessa ideia de que o branco não tem raça”, conclui.

Identidade racial

“Para além da ideia de hegemonia branca cultural simbólica, que vemos nas novelas e propagandas, tem aquilo que chamamos de identidade racial do sujeito branco”, conta Lia. A professora também explica que identidade racial não é algo que alguém escolhe por meio de suas identificações (que têm a ver com processos de identificação ao longo da vida, como com o pai, com a mãe, uma cultura, etc).

"Alguém branco pode estar identificado simbolicamente com aquilo que é nomeado como cultura negra. Frequentar candomblé, samba, etc. Mas isso não retira da pessoa a identidade racial branca. Por isso, volta e meia tem gente que diz ‘Eu não me sinto branco’. Mas essa não é uma questão de sentir, é uma questão de ser identificado assim pela sua estrutura social".

Branquitude e brancura são denominações diferentes. “A primeira se refere à cor da pele, enquanto a segunda se refere à ideia de raça ‘apropriada pelas pessoas brancas’. É uma cor branca, que tem a ver apenas com biologia, incorporada dessa ideia de raça construída no século 19 por uma pseudociência. O importante é entender como essa questão de raça se transforma em racismo. O racismo é a raça hierarquizada”.

"A branquitude é sempre um lugar de vantagem estrutural do branco em sociedades estruturadas pelo racismo", elucida Lia Schucman (fotos: Fiocruz Pernambuco)

 

Segundo a professora, a sociedade é quem define quem é branco, e essa divisão depende de um lugar histórico de poder e estrutura. “Quem é branco no Brasil, não é necessariamente branco nos Estados Unidos. E quem é branco na Zona Norte do Rio de Janeiro pode não ser branco na Zona Sul. Ou seja, há uma ideia de superioridade civilizatória que esses indivíduos teriam em relação aos outros. A gente sabe que não há nada de superior, não tem raça de verdade. Há sim, uma construção social de relação de poder e força”, explica.

Letramento racial

Em sua tese de doutorado pela Universidade de São Paulo (USP), Lia apresenta o conceito de ‘letramento racial’, cunhado originalmente como Racial Literacy, pela antropóloga afro-americana France Winddance Twine e traduzido livremente por ela. Em seus estudos, Twine propõe que, para que haja uma real desconstrução do racismo nas identidades raciais brancas, é preciso que as pessoas brancas se percebam racializadas e incorporem um conjunto de práticas, baseado em cinco fundamentos.

"O primeiro é o reconhecimento da branquitude. Ou seja, o indivíduo reconhece que a condição de branco lhe confere privilégios. O segundo é o entendimento de que o racismo é um problema atual e não apenas um legado histórico. Esse legado histórico se legitima e se reproduz todos os dias e, se o indivíduo não for vigilante, acabará contribuindo para essa legitimação e reprodução. O terceiro é o entendimento de que as identidades raciais são aprendidas. Elas são o resultado de práticas sociais. O quarto é tomar posse de uma gramática e de um vocabulário racial. No Brasil, evitamos chamar o negro de negro. Como se isso fosse um xingamento e como se evitar essa palavra pudesse esconder o racismo. Para combatê-lo, temos de ser capazes de falar de raça abertamente. O quinto é a capacidade de interpretar os códigos e práticas racializadas. Isso significa perceber quando algo é uma expressão de racismo e não tentar camuflar, dizendo que foi um mal-entendido". 

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