29/10/2020
Aline Câmera (Agência Fiocruz de Notícias)
Ao completar 120 anos de existência, mais uma vez a Fundação assumiu o seu papel histórico de combate a epidemias e se mobilizou no grande esforço global pela busca de um imunizante contra a Covid-19. Seja assumindo o papel tecnológico de apoiar a produção de uma vacina, seja contribuindo em estudos clínicos, a Fundação vem atuando, junto com o Ministério da Saúde, em diversas frentes.
No momento em que a pandemia avançava bruscamente nos países europeus e fazia as primeiras vítimas no Brasil, a Fiocruz já realizava um trabalho minucioso de prospecção que apontou a iniciativa liderada pela Universidade de Oxford como a mais promissora para um acordo de transferência de tecnologia. Em outra linha de ação, pesquisadores de diversas unidades da Fundação passaram a integrar grupos de pesquisa internacionais de outras vacinas em andamento no país. Na entrevista a seguir, o vice-presidente de Produção e Inovação em Saúde, Marco Aurélio Krieger, detalha essa força tarefa iniciada em março.
“A Fiocruz tem o papel tecnológico de apoiar a produção de uma vacina segura, de forma autônoma e com acesso facilitado à população”, Marco Krieger (foto: Peter Ilicciev)
AFN: Historicamente, uma vacina leva em média 10 anos para ser desenvolvida. O que possibilitou uma resposta tão rápida?
Marco Aurélio Krieger: Este é o terceiro surto de coronavírus que enfrentamos nas últimas duas décadas: tivemos Sars-CoV em 2002, Mers-CoV em 2012 e agora o Sars-CoV-2. Neste mesmo período, outros dois vírus despertaram a atenção mundial: zika e ebola. Estas diferentes emergências sanitárias mobilizaram grandes atores da saúde global que financiaram iniciativas para a busca de novas tecnologias e plataformas para acelerar o desenvolvimento de vacinas em respostas a estas emergências. Este processo foi um fator determinante para esta resposta rápida frente à ameaça epidemiológica da Covid-19. Apenas três meses após o mundo tomar conhecimento da nova pandemia, dois projetos promissores na busca pelo imunizante da Covid-19 entravam em fase de estudo clínico: a vacina sintética de RNA da Moderna e a vacina com vetor viral desenvolvida pela Universidade de Oxford. Hoje, menos de um ano depois do início da pandemia, já são mais de 40 vacinas candidatas em estudos clínicos.
AFN: Como se deu o trabalho de prospecção dos projetos em andamento até a decisão pela vacina de Oxford? Quais aspectos foram considerados?
Marco Aurélio Krieger: Como os ensaios clínicos são registrados em bancos de dados internacionais, foi possível mapear as diversas iniciativas que estavam em andamento, compilando-as numa matriz que levou em conta a fase de desenvolvimento de cada projeto, os resultados preliminares dos estudos e a tecnologia envolvida, fazendo ainda uma avaliação da adequação destas plataformas a infraestrutura existente [no Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos da Fiocruz] em Bio-Manguinhos. Foi preciso avaliar, diante do portfólio disponível, qual tecnologia seria mais facilmente incorporada à nossa capacidade de produção. Diante dessas dimensões, a vacina desenvolvida em Oxford foi a que obteve melhor pontuação se mostrando a mais promissora para um acordo.
Além de se mostrar como uma das mais avançadas no que se referia aos resultados clínicos – foi a primeira a entrar nos testes de fase 3, com resultados favoráveis nas primeiras duas etapas, tendo inclusive sucesso quando testada para outro tipo de coronavírus – essa iniciativa é baseada em vetor viral, o que permite, uma vez dominada a sua tecnologia, ser empregada para utilização em outras doenças.
Ter acesso à plataforma tecnológica da vacina de Oxford significa não apenas uma resposta rápida para a Covid-19, mas também a possibilidade de utilização em outros desafios sanitários do futuro. As plataformas de vetor viral que permitiram chegar a esse projeto de vacina são as mesmas avaliadas com resultados já clínicos promissores para Mers e Ebola. Nesses casos a plataforma se mostrou eficiente na indução da produção de anticorpos e também a resposta imune celular. Para acelerar este processo, com todo este conhecimento prévio, os pesquisadores trocaram a informação genética do vetor que induziu a resposta contra o coronavírus do surto de Mers, pela sequência específica do Sars-CoV-2 e, desta forma, foi possível dar agilidade ao desenvolvimento desta vacina candidata.
AFN: Os termos negociados colocam o Brasil em posição de destaque no cenário global?
Marco Aurélio Krieger: As premissas da negociação com a AstraZeneca, laboratório que detém os direitos de produção, distribuição e comercialização da referida vacina, levaram em conta, em primeiro lugar, a necessidade de contemplar a transferência total da tecnologia até o final do processo. Outro ponto importante envolve o acordo firmado entre a Universidade de Oxford e a AstraZeneca em que ambas abriram mão, durante a vigência da pandemia, tanto do recebimento de royalties, quanto de remuneração financeira, para auxiliar o esforço global de enfrentamento da pandemia. Isso permitiu que o valor da dose da vacina fosse negociado a preço de custo: 3,16 dólares, valor mais baixo praticado nas iniciativas de vacinas para Covid-19.
AFN: Há uma grande expectativa da sociedade para ter a vacina o quanto antes. Quando a Fiocruz terá as primeiras doses produzidas?
Marco Aurélio Krieger: O processo de transferência de tecnologia acontece em duas etapas e a disponibilização da vacina dependerá ainda dos resultados finais dos testes clínicos de fase III. Na primeira, incorpora-se quase que de forma imediata os processos de formulação, envase e controle de qualidade (o que terá início ainda no ano de 2020) e para essa ação, temos a previsão de 100 milhões de doses que serão produzidas com o Insumo Farmacêutico Ativo (IFA) recebido da AstraZeneca. Ao mesmo tempo, iniciaremos a transferência da produção desse IFA para Bio-Manguinhos. A expectativa é de começar a produzir em abril o IFA e, com isso, teremos a capacidade de entregar, no segundo semestre, outra remessa adicional de mais de 100 milhões de doses, fruto de uma produção 100% nacional.
A Fiocruz disponibilizará para o Programa Nacional de Imunização (PNI) mais de 200 milhões de doses da vacina. Isso é muito significativo e apenas será possível por conta da autonomia conquistada com a transferência da tecnologia e da capacidade técnico-científica industrial que a Fundação possui colocando o Brasil em uma situação privilegiada de acesso preferencial a vacina, situação que poucos países no mundo terão. É importante ressaltar que para cumprir o cronograma estabelecido, estamos acelerando algumas fases, sem que essa aceleração esteja descolada da segurança. O que está sendo feito não apenas aqui no Brasil, mas em outras partes do mundo, é a realização de diversas ações em paralelo, sem abrir mão do rigor técnico. Estamos adiantando a fase de produção em conjunto com os testes clínicos e, simultaneamente, estamos preparando todo o processo de aprovação na Anvisa, que será feito de forma contínua com o intuído de dar mais agilidade aos trâmites regulatórios.
AFN: Como é a participação da Fundação no esforço global em busca de imunizantes que sejam eficazes na prevenção da Covid-19?
Marco Aurélio Krieger: A responsabilidade da Fiocruz além do acompanhamento das vacinas mais avançadas e que podem chegar mais rapidamente a um produto, também é de continuar apoiando projetos de pesquisa básica e estudos clínicos, pois entendemos que nosso compromisso é com todas as iniciativas que possam ajudar a sociedade brasileira no acesso a uma vacina segura contra a Covid-19. Dessa forma, a Fiocruz vem atuando em várias frentes que vão desde o apoio a iniciativas de pesquisadores da própria Fiocruz, como é o caso de Bio-Manguinhos e também do grupo de Imunologia de Doenças Virais da Fiocruz Minas, que ainda encontram-se em testes pré-clínicos, até estudos externos já em fase 3 e que reúnem milhares de voluntários.
No momento, quatro estudos clínicos foram autorizados pela Anvisa no Brasil. A Fiocruz está envolvida nos testes clínicos das vacinas Coronavac e Janssen. Há, ainda, um estudo em andamento com a coordenação da Fundação envolvendo a vacina BCG, que parte de um imunizante cuja segurança já foi validada para outra doença, a tuberculose, e agora pretende-se avaliar se ela pode estimular uma resposta protetora também para a Covid-19. Estes projetos de pesquisa clínica mesmo que já tenham passado pelas fases I e II e estejam agora na III, são ainda como todos, projetos de vacinas candidatas. É importante que sejam avaliados e a Fiocruz está contribuindo com a sua competência técnico-científica reconhecida internacionalmente nesse sentido. Cabe ressaltar que trata-se de equipes diferentes, mantendo os devidos cuidados com as questões que envolvem confidencialidade e ética em pesquisa.
AFN: De que forma a Fiocruz vem contribuindo mundialmente para o avanço da ciência nesse campo das vacinas contra a Covid-19?
Marco Aurélio Krieger: A Fiocruz tem um protagonismo reconhecido na colaboração dos estudos clínicos. No estudo da vacina da Janssen que conta também com a participação dos centros do NHI, por exemplo, a Fundação está à frente da coordenação de todo o esforço na América Latina. Ter a oportunidade de testar na nossa população, com o nosso perfil genético e social, diferentes vacinas é um grande marco. Existem diferenças na manifestação da doença em diferentes populações. Outro aspecto relevante é a resposta à vacina que pode variar, dependendo das características de cada região. Teremos, então, a oportunidade de validar não apenas dados na população do nosso país, mas também assumiremos a liderança como um parceiro estratégico na América Latina, auxiliando nossos vizinhos na implementação de projetos de pesquisa.