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24/05/2023

Protótipo de sistema oferece dados mais precisos sobre a judicialização da saúde

Icict/Fiocruz


Em 2019, uma reportagem do jornal Valor Econômico, republicada no portal do Tribunal Regional Federal do Estado do Rio de Janeiro (TRF 2), estimava os gastos do Ministério da Saúde (MS) para cumprir as decisões judiciais de aquisição de remédios que não estejam registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em R$ 1,3 bilhão, no ano anterior. A judicialização da saúde atinge mais governos municipais e estaduais, e o impacto no próprio MS foi de 4.600% entre os anos de 2007 e 2018. 

Para levantar dados mais precisos sobre o tema, auxiliando o Judiciário e a Gestão Pública a mensurar o problema e poder evitar o desequilíbrio nas contas, o pesquisador Jânio Gustavo Barbosa criou um protótipo de programa que faz uma varredura nos sistemas de processo dos tribunais e traz dados mais precisos sobre a judicialização em saúde, o JUDJe – Judicialização no Diário de Justiça Eletrônico. O sistema é fruto de sua tese de doutorado – Infraestrutura de Informação na Fronteira entre Saúde e Direito: ampliando o diagnóstico da judicialização no Brasil – para o Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde (PPGICS) do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz).

 

Apenas nos tribunais estaduais e federais, o protótipo monitorou mais de 700 mil documentos que reúnem 12 terabytes de registros, com mais de três bilhões de movimentações processuais em mais de 32 tribunais de todo o Brasil. Esse esforço apresentou, somente no estado do Rio de Janeiro, uma coleta de mais de um milhão de processos apenas da área da saúde. A partir desse banco de dados qualificado, Barbosa ainda levantou registros que apontam, dentre outras coisas, sobre o tempo médio de cada processo judicial em câncer até a sentença, que foi de 27 meses e mais de 70% destas ações possuem liminares ou antecipações de tutela para garantia do tratamento imediato.

Segundo Barbosa, por falta de dados confiáveis, existem poucas referências que apontam ser câncer, o agravo como maior número de ações judiciais. Entretanto, explica o pesquisador, “o protótipo JUDJe sinalizou e ratificou essa hipótese de qual a doença mais judicializada nos tribunais”. A partir dos dados coletados de medicamentos e tratamentos mais judicializados, quando observados os de custo mais alto, a frequência maior, são de fármacos e cuidados oncológicos, como por exemplo câncer de mama e próstata. “Existem alguns medicamentos, utilizados no tratamento para câncer, que pela origem também são medicações indicadas para outras doenças como doenças renais ou tratamentos com corticosteroides. Mas, se olhado os agravos citados nos processos, combinado com o tipo de tratamento e o tipo de requisição judicial, câncer sem dúvida, é o de maior recorrência”. 

O ineditismo do projeto chamou a atenção do Conselho Nacional de Justiça, que realizou com Barbosa e outros especialistas o Seminário de Pesquisas Empíricas Aplicadas a Políticas Judiciárias, no dia 27 de outubro passado, que teve como tema Judicialização da saúde e mecanismos de melhoria da prestação jurisdicional.

Informação: insumo da saúde 

Tendo como fonte de dados o Diário de Justiça Eletrônico (DJE), o trabalho de Barbosa compreende três anos de pesquisa sobre os processos de judicialização para o câncer desenvolvendo um método piloto aplicado no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ). Com o processamento em torno de 27 milhões de movimentações processuais ao longo de sete anos (2015-2021), a metodologia elaborada processou mais de 10 vezes todas as movimentações processuais alcançando a marca de mais de 250 milhões de checagens nos dados. “O objetivo sempre foi de desenvolver uma ferramenta que realizasse a análise dos dados do processo em câncer reconhecendo, coletando e guardando dados em metadados que tivessem a potência de explicar as características dos processos em saúde”, explica Barbosa. A pesquisa envolveu a mineração de dados e a sua formatação “permitiu que, a partir de usos e buscas realizadas pelos usuários, o JUDJe tivesse a capacidade de corrigir, melhorar e atualizar seus registros”, afirma o pesquisador.

Criação e Arte do infográfico: Vera Fernandes (Ascom/Icict/Fiocruz) - Clique na imagem para ampliar.

 

O trabalho desenvolvido por Barbosa, que atualmente realiza pós-doutorado também no PPGICS e é pesquisador bolsista do Laboratório de Informação Científica e Tecnológica em Saúde (LICTS) do Icict/Fiocruz, trata a informação em um conceito mais ampliado, como explica o pesquisador: “não apenas como um registro, mas como um insumo da saúde, ou seja, como um dos pilares integrantes da equidade do [Sistema Único de Saúde] SUS. A informação aqui é tida não apenas enquanto conceito, mas enquanto produto que deve estar a serviço da gestão pública e da tomada de decisão”.

Segundo Cristina Guimarães, uma das orientadoras de Barbosa (o outro foi o juiz federal de Santa Catarina, Clênio Jair Schulze), o protótipo está “muito longe do trivial, e não apenas pelo volume brutal de dados que foi tratado – as tecnologias, quando bem orientadas/desenvolvidas, cumprem esse trabalho com maestria – mas, fundamentalmente, pelo desafio interdisciplinar de se aproximar de um campo do conhecimento que possui uma prática e uma gramática muito diferente de tudo o que já havia me desafiado na vida acadêmica”, ressalta Cristina, que vai mais além: “encontrar e situar os nexos com a área de informação, e, em última instância, ‘transformar’ um Diário de Justiça em uma fonte de informação para pesquisa foi o grande salto que Gustavo deu. O mérito é todo dele”.

Funcionamento e parceria

O protótipo é capaz de identificar e estruturar bancos de dados sobre judicialização da saúde em 24 variáveis de forma, on line e on time, dos processos publicados no DJE, seja em versão em PDF ou versão on line, em uma metodologia que permite capturar todas as movimentações processuais em saúde publicadas no diário eletrônico, por dia. 

O JUDJe já dispõe da maior parte dos dados dos tribunais estaduais de 2008 até o presente, o que facilita a sua aplicação nos demais fóruns. Tanto o CNJ e o TJRJ já têm disponível a ferramenta, que é uma forma de mapear processos, características e perfis sentenciais para a doença ‘câncer’. A metodologia trabalha com uma complexa rede de busca e recuperação de descritores tais como câncer, processo, tribunal, medicamentos, advogado e etc., que foram testados segundo dicionários de listagem de nome de medicamentos e tratamentos que tivessem a potência de reconhecer, coletar e classificar movimentações oncológicas, apenas por leitura de linguagem natural.

Criação e Arte do infográfico: Vera Fernandes (Ascom/Icict/Fiocruz) - Clique na imagem para ampliar. 

 

Segundo Barbosa, com o JUDJe é possível analisar tipos de processos, características e perfis sentenciais, “consolidando formas diagnósticas, permitindo antecipar as judicializações específicas por territórios de saúde, por tipos de tratamento ou fármacos requisitados, orientando, inclusive, secretarias de saúde a partir de indicadores de performance do próprio sistema de saúde, seja ele do SUS ou da saúde suplementar”. Alguns exemplos práticos do uso do protótipo: é possível saber quantos processos citam medicamentos como Rituximabe ou Bosentana, por exemplo, ou quais os medicamentos estão associados às terapias mais solicitadas por tipo de agravo. Assim, pode-se combinar “tratamento hormonal” para “leucemia” ou “quimioterapia” para “carcinoma”, pelo JUDJe, por ano, por território de saúde/ município. A partir daí, o gestor pode incrementar a compra desse remédio para estoque em sua gestão, reduzindo o risco de superfaturamento nas contas em função de compras inesperadas, dando segurança financeira ao planejamento de gastos do município.

Outro exemplo: sabendo quais termos ou expressões que mais estão relacionadas aos agravos oncológicos, como “adenocarcinoma”, “radioterapia” ou “tumor maligno”, é possível ter uma lista de medicamentos mais usados nas ações judiciais, o que facilitaria não somente a assistência, a regulação dos pacientes, pós-terapia resultando, consequentemente, numa menor judicialização; e mais um exemplo: atualmente, os municípios recebem e cumprem às ações judiciais, que em sua maioria, abordam medicamentos e tratamentos já fornecidos pelos SUS. A partir do controle feito pelo JUDJe, é possível manter um estoque atualizado dos medicamentos e das vagas necessárias, dada a previsibilidade dos processos, dos controles de demanda realizado através das ações judiciais e das manchas de assistência, como leitos de uti, acompanhamento pós-terapêutico. Controlando os processos, os pleitos e os demandantes, tanto os tribunais podem atuar numa velocidade maior, quanto os municípios podem controlar com conforto, as demandas extras em curso, melhorando a integralidade e regulação do sistema de saúde.

O juiz federal Clenio Schulze, que é membro do Comitê de Saúde do Fórum da Saúde do Conselho Nacional de Justiça, destaca a importância do trabalho realizado por Gustavo Barbosa: “o Brasil é um dos países com maior número de processos judiciais na área da saúde e é importante que existam pesquisas para apresentar diagnósticos e indicar medidas de qualificação das decisões. Por isso que o CNJ e os Tribunais são receptíveis a este tipo de pesquisa acadêmica, diante do resultado prático ao processo judicial”, afirma o magistrado.

A expectativa de Barbosa e seus orientadores é que seja fechada parceria junto ao CNJ, e as secretarias de saúde, para a o uso do JUDJe junto não só ao Conselho, e aos municípios, mas extensivo a outros tribunais. Cristina Guimarães torce pela parceria: “que não seja mais um bom projeto que adormece na literatura científica. Ao contrário, que possa, realmente, despertar o interesse de parceiros e outros colaboradores para que seja aprimorada, ampliada, customizada, e possa servir ao Judiciário, ao SUS e à pesquisa acadêmica”.   

Enquanto a parceria não é celebrada oficialmente, o protótipo vem ajudando pesquisadores de diversos órgãos e universidades a desenvolver os seus próprios estudos, como é o caso do trabalho de conclusão de curso de Nagamatsu Kummer, intitulado Judicialização da saúde: elementos influenciadores de decisões judiciais sobre tratamentos de câncer e da tese de doutorado de Pamela Souza, intitulada Análise visual aplicada em processos de judicialização de doenças raras do estado de São Paulo, do trabalho de conclusão de curso de Jean Carlo do Nascimento Pereira, intitulado Judicialização da saúde mental: extração transformação e carga a partir dos Diários de Justiça para análise do transtorno do Espectro Autista (TEA),  todos realizados na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto, da USP.

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