19/11/2024
David Barbosa (Agência Fiocruz de Notícias)
Está nos abadás dos foliões que correm atrás dos trios elétricos de Salvador, ao som dos atabaques e agogôs. No dengo dos caçulas com suas mães, pedindo cafuné ou seus quitutes favoritos — do mungunzá, que no Sul e Sudeste é canjica, aos bolos de fubá. No azeite de dendê comprado nas quitandas para preparar o acarajé e o vatapá; nos gibis que fazem a alegria dos moleques; nas miçangas que tecem os colares sagrados nas cores dos orixás. A negritude está por toda parte na constituição da identidade brasileira, da culinária à religião, da música à literatura, do avanço da ciência à formação de nossa língua — como nas palavras destacadas em itálico neste parágrafo, todas de origem afro-brasileira.
Que os sambas nascidos nos quintais de tia Ciata, no início do século 20, são negros, muitos já sabem. Mas a influência africana está também no maxixe, no choro, na bossa-nova e em diversos outros gêneros da nossa música, além do uso de instrumentos como berimbaus, tantãs e afoxés. Os corpos que dançam os candomblés, maculelês, afoxés, jongos e maracatus executam movimentos de origem negra, assim como a dança que se transforma em luta — e luta que se transforma em dança — das capoeiras.
Grandes nomes das nossas artes são pessoas negras: Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, um dos maiores expoentes da escultura do nosso país; a cantora Dolores Duran, uma das rainhas do rádio nacional; o poeta Cruz e Sousa, sempre lembrado entre os principais representantes do simbolismo brasileiro; a bailarina Mercedes Baptista, precursora do balé afro. Mas as contribuições da população negra não se restringem à cultura. O médico Juliano Moreira revolucionou a forma de lidar com pacientes psiquiátricos no país, ao propor a humanização dos tratamentos, no início do século 20. Virgínia Leone Bicudo, nas décadas de 1940 e 1950, foi uma das precursoras da psicanálise em nosso país.
Joaquim Venâncio, que dá nome à Escola Politécnica de Saúde da Fiocruz, ingressou no Instituto Oswaldo Cruz como servente e se tornou auxiliar de laboratório, contribuindo para a produção de conhecimento científico sobre diversos temas, especialmente anfíbios e moluscos. Jaqueline Goes de Jesus, egressa do Instituto Gonçalo Moniz (Fiocruz Bahia), integrou a equipe que mapeou os primeiros genomas do Sars-CoV-2 no Brasil, logo após a confirmação do primeiro caso de Covid-19 no país.
Para construir uma cultura de valorização das pessoas negras, a memória é parte fundamental, destaca Luciana Lindenmeyer, integrante do Comitê Pró-Equidade de Gênero e Raça da Fiocruz. “Foram quase 400 anos de uma escravização que precisa ser lembrada. Precisamos entender como essa sociedade foi erguida sobre a exploração, a tortura, as violências, os estupros de mulheres negras, e assim por diante. As leis 10.649 e 11.645 (que determinam a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena nas escolas) ainda não estão totalmente implementadas nas escolas. As crianças precisam crescer e ser formadas numa sociedade que preza essa valorização africana”, lembra.
Mas, para Luciana, apenas lembrar não basta: é preciso ouvir o que a população negra tem a dizer para além do racismo que ela enfrenta cotidianamente — e não somente no mês de novembro. “Precisamos superar essa perspectiva de colocar a população negra para falar apenas sobre racismo. No mês da Consciência Negra, as pessoas negras são muito convidadas para falar nos eventos, nas empresas, nas escolas, mas nos outros meses do ano não vemos essa mesma mobilização”, reitera. “Ainda precisamos de muitos avanços, mas temos condição de falar sobre todos os aspectos da vida. Quando debatemos herança africana, não é para falar só da cultura, do samba, da música, da comida: é para a gente falar da contribuição nas ciências, na matemática, na medicina. Precisamos superar esse epistemicídio. Fazemos isso colocando essas pessoas para dialogarem sobre os mais diversos temas, como a população negra tem condição de fazer”.