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17/09/2009

Doença de Chagas: velha enfermidade, novos desafios

Paulo Gadelha e Tania Araújo-Jorge*


A velha doença do barbeiro, descrita como um dos problemas de Jeca Tatu na literatura brasileira, ainda nos desafia. Um século após sua descoberta, a doença de Chagas representa uma questão global de saúde pública: sem cura ou vacina, afeta cerca de 16 milhões de pessoas em todo o mundo, segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), e exige estratégias de controle cada vez mais elaboradas.

 

 Barbeiro (vetor da doença de Chagas) que acabou de se alimentar com sangue humano
Barbeiro (vetor da doença de Chagas) que acabou de se alimentar com sangue humano

São os indivíduos em sua faixa etária mais produtiva – dos 30 aos 60 anos – os mais atingidos. Assim, a doença de Chagas tem forte impacto na capacidade de trabalho e geração de renda. Um ciclo vicioso perverso em que a pobreza é determinante social da doença e a doença gera mais pobreza. Apenas as diarreias infecciosas e a epidemia de Aids são mais impactantes que a doença de Chagas.

No Brasil, estima-se em dois milhões o número de pacientes crônicos – 600 mil com complicações cardíacas ou digestivas que levam a óbito cinco mil pessoas por ano. Em valores absolutos, o número de brasileiros que morrem por doença de Chagas é similar ao dos que morrem por tuberculose e dez vezes superior às mortes causadas por esquistossomose, malária, hanseníase ou leishmaniose.

Apesar desse quadro crítico, o centenário da descoberta da doença de Chagas, comemorado este ano, é também um momento de celebração dos avanços da ciência. Honrando a grandeza da descoberta de Carlos Chagas, o sucesso da estratégia de interrupção da transmissão da doença pelo seu principal vetor nas Américas é exemplo mundial. Em 2006, o Brasil foi certificado pela OMS por ter controlado a transmissão pelo Triatoma infestans, nosso barbeiro mais comum, em todos os estados do país. Nos restam agora os desafios de dar sustentabilidade ao controle do vetor, prevenir a transmissão por outros insetos e mecanismos, como a via alimentar, redobrar a atenção sobre o impacto de instabilidades ambientais sobre o ciclo silvestre do vetor da doença, o que pode favorecer novas formas de transmissão, e garantir a atenção aos milhões de pacientes agudos e crônicos.

Não são poucos os desafios que nos cabem, mas a história do enfrentamento da doença nos ensina e inspira. Sua trajetória teve início em 1909, com a descoberta tripla de Carlos Chagas, grande cientista que deixou sua marca na Fiocruz e na ciência mundial – feito único na história da medicina por incluir todo o ciclo da doença: agente etiológico causador, inseto vetor e infecção humana. A descoberta prestigiou internacionalmente a ciência brasileira e, entre outros reconhecimentos acadêmicos nacionais e internacionais, Carlos Chagas foi duas vezes indicado ao Prêmio Nobel.

Um século após a descoberta da doença, permanecem grandes desafios. É consenso que para prevenir e identificar as formas agudas da infecção é necessário aprimorar os métodos de diagnóstico, testar a associação de medicamentos e conhecer mais profundamente a resposta dos pacientes aos protocolos de tratamento. Um desafio epidemiológico importante é a emergência da doença na Amazônia e a maior lacuna que permanece certamente diz respeito ao desenvolvimento de novos fármacos – atualmente há somente dois medicamentos disponíveis para o tratamento da doença.

Considerada tradicionalmente uma doença relacionada à pobreza, endêmica nas Américas, a doença de Chagas passa atualmente por um processo de alteração de seus padrões epidemiológicos clássicos. Casos crônicos e agudos, importados e autóctones, têm sido registrados em todo o mundo, inclusive nos países ricos, que há até pouco tempo não compartilhavam deste problema. Esta complexa transição epidemiológica, da qual emerge a abrangência global da doença de Chagas, sinaliza a necessidade do esforço integrado de diversos países para seu enfrentamento. Neste novo cenário, desempenhar com responsabilidade e comprometimento o papel do Brasil é tão impactante como foram os esforços de Chagas e de seus colaboradores na primeira década do século 20.

*Paulo Gadelha é presidente da Fiocruz e Tania Araújo-Jorge é diretora do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz).

Artigo publicado no jornal Correio Braziliense, em 11 de de setembro de 2009.

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