12/05/2017
Gustavo Mendensohn de Carvalho (CCS/Fiocruz)
O livro Medicina e Saúde Pública na América Latina: uma história, cuja edição em português acaba de ser lançada pela Editora Fiocruz, parte do encontro das medicinas indígena e africana com a europeia no período colonial, e avança até as práticas de saúde globalizadas de nossa época. Os autores, Marcos Cueto, da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), e Steven Palmer, da University of Windsor (Canadá), trabalham na perspectiva de que o continente não foi historicamente um mero reprodutor de conhecimentos e procedimentos “importados” da Europa e da América do Norte, mas foi capaz de propor inovações científicas e práticas de políticas públicas de saúde pioneiras. Além de discutirem amplamente essas questões, analisam o papel de personagens e instituições que influenciaram a história da medicina latino-americana. A pesquisa que resultou no livro rendeu aos historiadores o Prêmio George Rosen 2017, da Associação Americana para a História da Medicina.
Uma história marcada por doença e sofrimento, que trouxe a dizimação de populações indígenas desde a “Conquista” pelos colonizadores europeus e se perpetua até hoje na miséria de populações rurais e urbanas, com consequências sociais e políticas, que se traduzem em indicadores de saúde e doença chocantes. Durante muito tempo, aspectos dessa realidade foram investigados por diversas disciplinas, originando estudos geográficos, demográficos, relatos de curiosidades sobre métodos de cura pré-colombianos e biografias de grandes vultos locais na área da saúde, além do registro da chegada ao continente de avanços tecnológicos produzidos nas grandes metrópoles ocidentais.
Entretanto, o livro mostra que nas últimas décadas isso mudou significativamente, com o surgimento de uma nova historiografia, usando novas fontes de pesquisa, permitindo construir “uma história intelectual alternativa da América Latina e do Caribe”. Essa abordagem mais atual leva em conta, por exemplo, a contribuição de escravos ou ex-escravos que incorporaram práticas ancestrais de cura, e permite apreender como “cientistas médicos latino-americanos criaram um nicho de poder para si próprios em redes internacionais de conhecimento e poder”. A proposta dos autores é realizar uma abordagem histórica de temas sociomédicos, concentrada em práticas inovadoras na pesquisa médica e em iniciativas de saúde pública, trazendo uma “visão contemporânea sobre o papel da medicina em processos de negociação entre diferentes atores sociais”.
A interação das práticas médicas afroamericanas e europeias na era colonial deixou marcas que sobreviveram pelos séculos, ensejando um sistema misto de cura, “importante para a compreensão dos princípios da saúde pública contemporânea que envolvem abordagens interculturais locais”. Em meados do século 19, começam a surgir no continente agências nacionais dedicadas à saúde, desenvolvendo noções de controle sanitário voltadas para a proteção das economias exportadoras emergentes e para a regulamentação da vida nas cidades. Estas agências estabeleceram contatos entre si, promovendo maior intensidade nas relações entre os “domínios sanitários internacional e nacional”. Os autores analisam a formação das comunidades de médicos pesquisadores e inovadores por essa época; estes eram atores sociais relativamente privilegiados e integravam “o circuito de redes emergentes da ciência médica global e da organização sanitária”, sustentando que “as elites médicas nascidas na América Latina não eram formadas por colonizados subalternos”.
Ainda que os países da América Latina fossem tidos, em fins do século 19 e no século 20, como “províncias neocoloniais dos Estados Unidos” e, no campo da saúde, fosse grande a influência de iniciativas “filantrópicas ou bilaterais”, a exemplo das patrocinadas pela Fundação Rockefeller, as políticas e instituições locais atuavam de maneira distinta ao que acontecia nas colônias asiáticas e africanas. Para os autores, a América Latina “foi a arena mais ativa e inovadora em termos de iniciativas pioneiras na área da saúde internacional”, tendo influenciado decisivamente no sistema de saúde mundial que surgiria após Segunda Guerra, com papel de destaque na criação da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas).
No entanto, ainda que preservando a autonomia regional, mesmo tendo sido bastante originais em alguns casos, havia influência de um tipo de medicina social de inspiração europeia. Programas médicos “eram planejados e implementados de cima para baixo”, com modelos tecnocráticos e concentrados em doenças específicas, deficientes e limitados, sem enxergar a saúde pública de forma holística. Mais tarde, em oposição a essas abordagens verticais, começaram a ser desenvolvidos programas que enfatizavam a participação popular e a promoção do atendimento de saúde primário integral.
A relação das comunidades médicas com o Estado estava consolidada, a rede de hospitais urbanos tinha sido ampliada, em alguns casos acompanhada pela expansão dos sistemas de seguridade social. Mas, a partir da década de 1980, a concepção neoliberal passa a impregnar as políticas de saúde de modo restritivo e tecnocrático, contrapondo à atenção primária integral uma visão baseada em custo-benefício.
Chegando ao século 21, o livro discute os desafios atuais no continente, os novos surtos epidêmicos, as ideias de saúde intercultural, os novos medicamentos derivados da biodiversidade. Defende a proposta de que uma característica da terapêutica latino-americana moderna é o pluralismo médico, uma “maneira pela qual formas vitais de medicina popular e ética envolvem instituições e práticas biomédicas dominantes mesmo nos centros urbanos”. Da relação entre as medicinas “oficial” e “não oficial”, com momentos de tolerância, de busca por hegemonia ou de rejeição mútua, “acabou resultando numa interconexão complexa, ao mesmo tempo conflituosa e complementar e articulada de forma bastante diferente de acordo com cada país ou região”.
Cueto e Palmer sugerem uma reflexão sobre o desenvolvimento da saúde pública latino-americana, que se deu nos limites de um compromisso entre as intervenções oficiais parciais, de um lado, e esforços para o enfrentamento das adversidades pelas classes média e populares, de outro. Hipótese sustentada pelas ideias de “cultura da sobrevivência” e “saúde na adversidade”. A primeira ideia tem como uma de suas características a crença de que campanhas baseadas em novas tecnologias (p. ex. de combate à malária, tuberculose, HIV) poderiam ter seus objetivos alcançados “sem intervir nas condições de vida dos mais pobres”. Outras características seriam a “descontinuidade dos esforços e a fragmentação institucional”, e uma visão limitada da saúde pública, entendida como “remendo para emergências, com intervenções pontuais e de baixo custo”. Já a noção de “saúde na adversidade” também se caracteriza por inovações tecnológicas (vacinas, reidratação oral), mas tentando adaptar programas às condições locais, estruturá-los de forma mais horizontal, visando “tornar o trabalho em saúde um elemento de integração social capaz de garantir a igualdade de oportunidades a todos cidadãos”.
Clique aqui para outras informações sobre o livro.
Na AFN
Mais notícias