14/04/2015
A construção da saúde coletiva no Brasil foi o ponto de convergência de movimentos políticos diversos, todos com forte participação de intelectuais públicos. Entre eles, destacou-se o médico sanitarista, político e humanista italiano Giovanni Berlinguer, a quem devemos a compreensão da saúde como um valor universal e uma fonte permanente de inspiração para o movimento da reforma sanitária. Homenageá-lo nesse momento de luto só ganha significado, portanto, se o seu legado de compromisso com a vida, os direitos humanos e a ética continuar a nos inspirar.
Nascido em Sassari, no norte da Sardenha, em 1924, Giovanni Berlinguer viveu da infância à juventude em uma Itália marcada pelas duas grandes guerras e pela experiência dramática da ascensão do fascismo. Graduado em medicina pela Universidade de Roma, retornou à Sardenha onde se tornou professor da Universidade de Sassari e defendeu livre docência em Medicina Social. Em 1974 assumiu a cátedra de Saúde do Trabalho na Universidade La Sapienza, em Roma, instituição da qual se aposentou em 1999. Sua intensa carreira acadêmica desenvolveu-se em paralelo à militância política, tendo sido eleito deputado pelo Partido Comunista Italiano em três períodos legislativos, de 1972 a 1983. Nesse último ano elegeu-se senador, cargo que exerceu em sucessivos mandatos até 1992. A experiência parlamentar seria retomada de 2004 a 2007, período para o qual foi eleito deputado italiano junto ao Parlamento Europeu.
De forma coerente à orientação internacionalista de sua atuação política, acompanhou, nas décadas de 1970 e 1980, o debate em torno da medicina social na América Latina e, especialmente, o movimento pela reforma sanitária no Brasil. Defensor de novas bases para uma consciência sanitária e atento às relações entre a saúde, a medicina e o mundo do trabalho, manteve forte relação com o Cebes e a Abrasco e com as principais lideranças da saúde coletiva. O diálogo em torno de suas ideias esteve presente no debate teórico e político que antecedeu a aprovação do capítulo sobre saúde na Constituição de 1988 e a criação do SUS. Nesse mesmo contexto foram publicados pelo Cebes, em co-edição com a Hucitec, os livros Reforma Sanitária – Itália e Brasil (1988), em co-autoria com Sônia Fleury e Gastão Wagner Campos, e O que é afinal a doença?(1988). Nessas obras, a profunda relação entre saúde e democracia e a defesa de ambas como valores universais constituem idéias força do debate sobre a reforma sanitária e a dimensão coletiva do processo de adoecimento.
A partir da década de 1990, Giovanni Berlinguer passou a se dedicar à Bioética, imprimindo a essa área sua marca intelectual e política ao formular questões próprias ao mundo do trabalho, ao direito das novas gerações, à regulação do mercado e à oposição à mercantilização da vida. Desses temas tratam os livros Questões de Vida — Ética, Ciência e Saúde (1991); Ética da Saúde (1995), O Mercado Humano (1996 e 2001 – a segunda edição feita em parceria com Volnei Garrafa) e Bioética Cotidiana (2004).
Personalidade inclinada ao importante exercício da auto reflexão e crítica, Berlinguer ao discorrer nos últimos anos sobre os diferentes períodos de sua produção intelectual, afirmava a necessidade de se evitarem explicações monocausais, quer a aposta em intervenções da biomedicina sobre a vida e a saúde, quer a defesa exclusiva do enfoque das condições de determinação social. Este foi o tom de sua conferência Causas sociais e implicação moral das doenças ao receber, em abril de 2007, o título de Doutor Honoris Causa pela Fiocruz. Na mesma ocasião, concedeu entrevista na qual deixou uma mensagem que resume sua visão política sobre os desafios colocados para as novas gerações. Não existe ética sem a garantia do direito à saúde e a uma vida plena, o que só é possível com a defesa radical do processo democrático:
“Sociedades democráticas podem estar na vanguarda dos direitos humanos, desde que elas não façam guerras como pretexto para impor a democracia. Acredito que a principal regra ética da nossa era deve ser baseada no princípio da solidariedade, em termos de espaço e tempo. O espaço da solidariedade diz respeito ao esforço contra as desigualdades existentes no mundo: gênero, educação, trabalho, saúde, poder. O tempo da solidariedade diz respeito aos direitos das futuras gerações, que estão sendo expropriadas da possibilidade de desfrutarem, no mínimo, dos mesmos recursos que nós recebemos dos nossos antecessores”.
Giovanni Berlinguer: presente!
*Nisia Trindade Lima é socióloga e vice presidente de Ensino, Informação e Comunicação da Fiocruz. O texto foi publicado originalmente no site do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (www.cebes.org.br).