Início do conteúdo

02/07/2019

Palestras abordam tratamento e indústria da cannabis medicinal

Gustavo Mendelsohn de Carvalho, Julia Dias e Matheus Cruz (Agência Fiocruz de Notícias)


Epilepsia, câncer, autismo, Parkison, Alzeimer, entre outras. Estas são algumas das doenças em que o uso da cannabis medicinal e de seus derivados podem fazer diferença no tratamento, segundo indicam estudos clínicos, pesquisas e experiências de pacientes. No entanto, a proibição e o estigma em torno da planta dificultam o desenvolvimento de pesquisas na área e o acesso aos pacientes.

Muitos países, inclusive o Brasil, debatem no momento a regulação para o uso medicinal da cannabis e diferentes modelos têm sido adotados. A mesa Geopolítica e indústria da Cannabis medicinal (30/6), da 2ª edição do seminário internacional Cannabis medicinal: um olhar para o futuro, que aconteceu no Instituto Europeu de Design, tratou do tema. 

“Nós pacientes somos evidência”

“Por conta da proibição da cannabis medicinal perdemos anos em pesquisa e uso de medicamentos. Quanto sofrimento poderia ter sido evitado, quantas vidas seriam salvas, quantas ainda estariam por perto. O obscurantismo custa vidas. Não são resfriados de que estamos falamos, são coisas crônicas e/ou terminais. Desinformação e dificuldade de acesso à saúde nos matam”, afirmou em um relato emocionado a fundadora da ONG Cannabis - gotas de esperança, Francesca Brivio.

Francesca é peruana e paciente de uma doença sanguínea rara, a mastocitose sistêmica. Sua doença é pouco investigada pela medicina e fazia com que ela sentisse náuseas e dores de barriga. Francesca chegou a pesar 40 kilos e a tomar 33 remédios até que descobriu que podia substitui-los pela cannabis. No entanto, o uso da planta in natura não permite que se possa conhecer a dosagem da substância que ela precisa e ter controle sobre o tratamento. Por isso, ela defende mais pesquisa. “Nós pacientes somos evidência”, garante Francesca ao demandar mais investigação e acesso.

O Peru aprovou em 2017 uma Ley de Cannabis Medicinal, que permite a comercialização por laboratórios de medicamentos derivados da cannabis. Francesca, no entanto, considera a lei insuficiente, já que não garante o autocultivo e o cultivo por associações. No seu caso, a substância terapêutica é o THC, parte psicoativa da maconha, e não o canabidiol, como em outras doenças. Para ela, uma melhor regulamentação deveria diferenciar uso de abuso e não qual substância deve ser permitida ou não.

Ordenamento internacional garante o uso medicinal

O médico chileno Sérgio Sánchez, diretor da Fundación Lationoamérica Reforma, lembra que tratados internacionais garantem o uso medicinal da planta. A Convenção Única sobre Entorpecentes, de 1961, reconhece em seu preâmbulo que o uso medicinal dessas substâncias é indispensável para o alívio da dor e sofrimento e que sua provisão adequada deve ser garantida. 

No entanto, o ordenamento internacional deve estar acima das legislações nacionais e os países que negam acesso aos pacientes que precisam estão desrespeitando acordos assinados. Para Sánchez, um dos motivos disso ocorrer é que o mesmo documento coloca a questão dos entorpecentes como um problema segurança pública e uma questão psiquiátrica, relacionada ao abuso e à dependência. Esse segundo fator acabou ganhando relevância sobre a questão medicinal e inclusive dificultando pesquisas na área. Mesmo no âmbito das Nações Unidas, o Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crime (UNODC) sempre teve mais voz sobre a questão do que a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Mapa dos países com cannabis medicinal disponível (clique para ampliar) 

 

Na Colômbia, uma indústria começa a se desenvolver

Apresentando o caso da Colômbia, Andres Lopez, ex-diretor do Fundo Nacional de Entorpecentes do Ministério da Justiça, comentou que existem dois grandes modelos de regulação que vêm sendo utilizados: o modelo de justiça penal e o modelo farmacêutico. No primeiro modelo, utilizado em países como Estados Unidos e Canadá, se fundamenta na despenalização do uso da cannabis para fins médicos, legalizando o uso, a venda e às vezes o autocultivo. No modelo farmacêutico, trata-se a cannabis e os canabinóides como princípios ativos farmacêuticos que devem cumprir todos os requisitos próprios de um medicamento para poder ir à venda. O primeiro modelo apresenta a vantagem de ser mais rápido e de mais fácil acesso, no entanto ele não garante registros e padrões sanitários.

Em 2018, a Colômbia aprovou um decreto que permite a produção de fitoterápicos a partir da cannabis e regulamenta usos medicinais e científicos mediante licenças emitidas pelos Ministérios da Saúde e da Justiça, em consonância com o modelo farmacêutico. O país já havia despenalizado anteriormente o consumo, porte e cultivo de até 20 pés de cannabis para uso pessoal. O novo decreto permite a criação e desenvolvimento de uma indústria e de pesquisas na área. Lopez afirma que cerca de 150 empresas já se licenciaram desde a aprovação do decreto, mas ainda estão em fase de desenvolvimento de seus produtos, que devem ser comercializados em breve.

Experiência de Jujuy no cultivo estatal da cannabis

Na manhã do segundo dia do seminário (30/6), a mesa de abertura foi sobre a experiência do Projeto Piloto de Cultivo na Argentina, na província de Jujuy. Com a mediação de Andrew Reed (Uerj), a mesa sobre o projeto inovador do país vizinho contou com a participação do ministro de Saúde de Jujuy, Gustavo Alfredo; coordenador de pesquisa do projeto, Agustin Yécora; e do diretor da empresa pública Cannabis Avatãra S.A., Marcelo Guastella.

A empresa, que tem o nome comercial de Cannava, foi criada após o governo local autorizar a importação de sementes e iniciar testes para a elaboração e distribuição do óleo da cannabis. O projeto piloto será realizado em uma fazenda de propriedade pública, em associação com a empresa privada Green Leaf International, subsidiária da Player Networks. A holding norte-americana, que está em franca ascensão no negócio de cultivo, produção e distribuição de derivados da cannabis, se compromete a transferir tecnologia e investir recursos financeiros na experiência argentina.

Iniciado no final do ano passado, o projeto de Jujuy é pioneiro no de cultivo medicinal da cannabis no país, com a expectativa de produção de 300 mil litros de óleo em cinco anos. O planejamento operacional envolve habilitação de profissionais, pesquisa científica, estudos clínicos, além de tecnologia sofisticada, que prevê até o monitoramento e rastreamento eletrônico das plantas. Milhares de pacientes com diversos agravos podem se beneficiar com um plano de assistência a partir de derivados da planta, garantindo maior acessibilidade, segurança, qualidade e eficácia.

Para o ministro Gustavo Alfredo, “a cannabis vai se impor no mundo, pois tem efeitos claramente benéficos em diversas enfermidades, e o Estado deve estar presente para garantir o acesso”. Ele aponta benefícios da ação regulatória, como mitigar efeitos adversos da automedicação, da dependência e o aumento do conhecimento científico sobre doses e concentrações adequadas para cada caso.

Mas o projeto de Jujuy obviamente está longe de ter a aprovação unânime dos argentinos. De um lado, os que anseiam pelo acesso legal aos medicamentos demandam a legalização também do cultivo associativo e questionam o modelo de público-privado, que traz atrelado a perspectiva de lucro. Na outra margem do caminho, que apenas começa a ser trilhado, estão as marchas de cidadãos que defendem o combate total às drogas e temem que Jujuy venha a se tornar uma indesejada “narco-província”.

Acesso à medicamentos no Brasil 

Na mesa Políticas públicas e cannabis medicinal (29/6), mediada pelo jornalista Denis Burgierman, do Jornal Nexo, a pauta foi o acesso à medicamentos e a importância do Sistema Único de Saúde (SUS). Para o diretor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Sidarta Ribeiro, pessoas que eram extremamente reativas sobre a cannabis hoje têm o argumento diferente porque existe uma certa pressão dos pacientes. “A maior parte dos pacientes é muito carentes e não tem a menor condição financeira de adquirir alguns medicamentos. A solução mais óbvia para essas situações seria o plantio da cannabis”, afirmou.

A professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Luciana Boiteaux chamou a atenção para as dificuldades em debater sobre acesso a medicamentos derivados da cannabis, saúde e usos de substâncias que deveriam estar dentro da liberdade individual. “O Brasil é um dos países mais proibicionistas do mundo e isso faz mal à saúde. O Brasil importa o modelo da política de cannabis medicinal dos Estados Unidos e lá essa política tem passado por mudanças significativas, então, qual a dificuldade que temos em trazer esse debate para o país?”, disse. Luciana afirmou que não é só reduzir danos e impedir retrocessos, mas tentar avanços e mostrar que a política de drogas não só inclui grupo de cultivadores, mães e universitários. “É um cenário que até na América Latina o Brasil está muito atrasado”, concluiu.

Gulnar Azevedo, presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), ressaltou a importância de trabalhar para manter os avanços já conquistados na saúde pública e a relevância do SUS para a população. Gulnar aprofundou o argumento da acessibilidade aos medicamentos e saúde básica citando o caso de populações em área remota e indígenas. “Às vezes a condição financeira para comprar medicamentos não é o único problema, mas, essas pessoas também não têm nenhum acesso à assistência médica, e isso é muito grave”, disse. A médica lembra que o acesso à saúde melhorou bastante nos últimos anos, mas que infelizmente esse tempo não foi suficiente para que houvesse uma diminuição na desigualdade existente no país.

Voltar ao topo Voltar