26/09/2017
Angélica Ferreira Fonseca e Marcia Valéria Morosini*
A recente aprovação da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) na Comissão Intergestores Tripartite (CIT) foi recebida com bastante contrariedade por importantes sujeitos políticos coletivos e instituições da saúde pública. O Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva, o Conselho Nacional de Saúde e a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade estão entre os que manifestaram publicamente preocupações em relação ao caráter regressivo de algumas propostas, a baixa permeabilidade às apreensões e questionamentos dos trabalhadores e a desconsideração de evidências científicas que validam eixos estratégicos da política que vinha sendo implementada.
Algumas críticas incidem também sobre o caráter centralizado do processo de formulação da política e, sobretudo, do processo decisório, que se valeu, como já sinalizava Gerschman e Santos (2006), do fato de ter se constituído na saúde “uma estrutura institucional que reserva à burocracia estatal controle sobre as principais decisões, com um peso elevado ao gestor federal, às comissões intergestores e às associações de secretários municipais e estaduais de saúde” (p. 182). Nesse sentido, a política de saúde acaba por expressar menos a pluralidade de perspectivas e interesses da sociedade e mais os propósitos imediatistas de gestores.
Aqui nos propomos a pensar a PNAB 2017 por referência a uma questão mais geral: o que se espera de uma política de atenção básica? Ainda que os diversos caminhos teóricos possam nos levar a diferentes raciocínios, entendemos que uma política pública nos faz indagar sobre, ao menos, dois âmbitos de questões: as necessidades e demandas a que se pretende responder e o sentido que as decisões governamentais imprimem sobre a vida em sociedade, trazendo benefícios ou prejuízos para diferentes sujeitos sociais e expressando vitórias e derrotas de projetos e interesses postos em disputa.
A PNAB é parte integrante do Sistema Único de Saúde (SUS), que foi formulado com base em alguns princípios estruturantes e articulados, dentre os quais destacamos, para fins desta reflexão, a universalidade e a integralidade. Assumimos, como intenção destas breves notas, discutir efeitos que a revisão da PNAB projeta para a realização ou a consolidação desses princípios.
Inscrita na Constituição de 1988, a universalidade tem sido afirmada em associação ao preceito que define a saúde como ‘direito de todos e dever do Estado’. Nessa perspectiva, o acesso pleno aos serviços e ações de saúde se estabelece como norte e se requisita ao Estado que promova a oferta e a regulação do sistema nessa direção.
A convicção absoluta da pertinência da universalidade assim concebida fez com que, eventualmente, colocássemos em segundo plano uma realidade cada vez mais evidente: a de que o SUS instituiu-se e desenvolveu-se na contramão das políticas de corte neoliberal, hegemônicas nos anos 1990 e que têm prevalecido em diversos âmbitos da organização da sociedade capitalista. Temos acompanhado, não sem resistência, o fortalecimento do setor privado na saúde, sobretudo do ramo suplementar, e a progressiva transferência de responsabilidades e recursos do setor público para o privado, resultado da disputa insidiosa pelo fundo público.
A despeito dessas pressões foi possível concentrar esforços bem-sucedidos na expansão da Atenção Primária em Saúde (APS) que, por meio da Estratégia Saúde da Família, logrou alcançar uma cobertura nacional de aproximadamente 70%[1] da população e, em alguns municípios, de 100%. Confirmávamos, por meio da Atenção Básica, um caminho de ampliação da oferta de atenção à saúde e mantínhamos o princípio da integralidade como uma autêntica referência, a ‘próxima fronteira a ser conquistada’, colocando em pauta a interface entre necessidades de saúde e qualidade. Com esse empenho, pretendia-se diminuir a distância entre ‘intenção e gesto’, assumindo que quantidade e qualidade são dimensões indissociáveis de um sistema que efetive a saúde como direito.
E, talvez, impulsionados pelo otimismo da vontade, tenhamos sido insuficientemente alertas ao fato de que a ‘cobertura universal’ foi se instituindo nos interstícios dos processos de formulação das políticas, como um efeito pouco notado. Dissimulada, a noção de ‘cobertura universal’ se contrapõe justamente à ideia da saúde como dever do Estado, inicialmente preservando e, em seguida, ampliando o espaço dos serviços/seguros privados nos sistemas de saúde.
O contexto nacional acompanhou o fortalecimento dessa noção que se difundiu no cenário internacional, tornando-se parte importante das orientações para a composição de sistemas de saúde na América Latina (Laurell, 2017). Assumindo diferentes arranjos para a sua operacionalização, os sistemas baseados na ‘cobertura universal’ preservam um fundamento comum: a saúde é uma mercadoria que pode e deve ser posta para ‘livre’ comercialização no mercado, visando o lucro.
E de que modo a nova PNAB nos induz a preocupações nesse sentido? Primeiramente, o contexto no qual emerge essa política conjuga aspectos extremamente críticos como é o caso das restrições orçamentárias, impostas pela Emenda Constitucional nº 95 de 2016. Alia-se a esse elemento mais geral a explicitação, pelo Ministério da Saúde (MS), da posição favorável à oferta de planos com preços reduzidos. Ao compor um Grupo de Trabalho sobre o tema, o próprio MS assume, na gestão pública, a responsabilidade de refletir e possivelmente criar mecanismos que viabilizem a ampliação do escopo de atuação de empresas privadas de saúde, visando um contingente maior da população, sob o argumento de que, em tempos de crise, é necessário desonerar o SUS.
Esse movimento implica, necessariamente, o abandono da universalização como horizonte. Desqualifica o papel de regulador do MS – ou seja, de acompanhar e impor limites para a atuação de empresas privadas na saúde – e o qualifica como interlocutor dessas empresas – assumindo a intenção de promover a ampliação da parcela da população que passa a buscar no setor privado e não mais no SUS as formas de ter acesso ao cuidado em saúde. O poder público, em particular a esfera federal, passa a ser forte vocalizador de duas apostas, simultâneas e conectadas: a redefinição da saúde como um objeto de “relação contratual entre consumidor e fornecedor” (Barros, 2017) e o esvaziamento do Estado como responsável pela garantia do direito à saúde.
Se no plano mais geral temos tais elementos postos como ameaças ao princípio da universalidade, na PNAB isso se manifesta, mais especificamente, por meio de dois pontos. A ideia da plena inclusão da população no sistema, expressa pela cobertura de 100%, está restrita às áreas caracterizadas como de risco e vulnerabilidade social. Esse dado, que traz em si a fragilização do princípio da universalidade, deve ser pensado paralelamente ao deslocamento da Estratégia Saúde da Família (ESF) de seu papel prioritário para a expansão da APS. A PNAB 2017, sob o pretexto de reconhecer a existência de outras formas de organizar a Atenção Básica, restabelece o status das Unidades Básicas de Saúde tradicionais, apresentando-as como alternativa ao modelo da ESF. Essas unidades se compõem de equipes que podem ou não incluir agentes comunitários de saúde, profissional que tem, notadamente, sido responsável pela aproximação entre a população e os serviços, atuando na construção do vínculo e interferindo positivamente para a continuidade do cuidado. Fica exposto justamente o trabalhador que busca operar de forma mais imediata, no cotidiano, a efetivação do acesso e contribuir para que a universalização seja mais do que uma bandeira e se materialize como demanda da população com a qual ele trabalha.
Entre os princípios do SUS a integralidade é o que abarca mais sentidos e possibilidades de desdobramentos da teoria em práticas e ações concretas. Daí deriva o nosso entendimento de que a PNAB 2017 pode ser analisada, na totalidade de suas proposições, tendo por referência esse princípio. A nova configuração do Núcleo de Apoio à Saúde da Família, as mudanças nas composições de equipes e as alterações significativas em relação à Saúde Bucal são alguns exemplos. Contudo, optamos aqui por destacar um elemento da política que vai direta e frontalmente de encontro às concepções de integralidade que buscam fortalecer a capacidade do SUS de concretizar a integração entre necessidades e ações de saúde: a distinção de dois padrões de oferta de serviços, o essencial e o ampliado.
No texto, a definição dos padrões é bastante inespecífica. “Padrões Essenciais – ações e procedimentos básicos relacionados a condições básicas/essenciais de acesso e qualidade na Atenção Básica; e Padrões Ampliados – ações e procedimentos considerados estratégicos para se avançar e alcançar padrões elevados de acesso e qualidade na Atenção Básica, considerando as especificidades locais e decisão da gestão”.
A conformação desses padrões nos remete à atualização de disputas históricas em torno da APS. Se, por um lado, sempre esteve presente uma concepção ‘seletiva’ que defende a oferta de um conjunto simplificado e reduzido de ações, focalizada e direcionada a populações específicas, por outro, esteve igualmente presente o entendimento da APS ‘abrangente’, capaz de responder à maior parte dos problemas de saúde, assumindo a coordenação do cuidado na rede, permeada pelas práticas de participação social. Não se trata apenas de interpretações, mas de tensionamentos que expressam concepções sobre a saúde, sobre o lugar de um sistema de saúde na relação com a promoção dos direitos sociais e o próprio papel do Estado. A expansão e a qualificação da Atenção Básica ocorridas na última década estiveram fortemente influenciadas pela concepção abrangente de APS.
A PNAB 2017, ao explicitar a distinção entre dois padrões que evidentemente têm capacidades diferentes de interagir com as necessidades de saúde e de lhes oferecer respostas, afronta diretamente o princípio da integralidade. Isto se agrava com a recomendação de que somente o padrão essencial tenha sua oferta garantida em todo o país e que o padrão ampliado venha a ser alcançado a depender das “especificidades locais e decisão da gestão”. Assim atinge-se com muita intensidade, simultaneamente, tanto a integralidade quanto a universalidade.
Na conjuntura restritiva já assinalada e que demarca o contexto de produção dessa política, tal distinção entre arranjos de cuidado à saúde tende a reforçar os problemas de qualidade e os limites ao acesso presentes hoje na Atenção Básica e, em grande parte, já conhecidos. Tais problemas mereceriam encontrar, em cada nova PNAB, um instrumento de contraponto, num movimento contínuo que proporcionasse orientações e indicativos para um avanço real. O papel de indução de práticas de gestão, de organização dos processos de trabalho e de orientação da formação que as políticas de saúde desempenham no SUS, nesse momento, parece estar refém de uma lógica de reestruturação do sistema, voltada mais para a redução de custos e determinada por uma normatividade neoliberal do que para o compromisso com o interesse público.
A PNAB 2017 aponta para um caminho no qual a Atenção Básica se distancia das estratégias que têm se construído na perspectiva da promoção da saúde, com o reconhecimento dos determinantes sociais do processo saúde-doença e a intervenção na associação entre vulnerabilidade e condições de existência, bases da concepção do cuidado ampliado. E, ao fazê-lo, negligencia o fato de que, no Brasil, 147 milhões de pessoas têm o SUS como referência para exercer seu direito à saúde.
*Angélica Ferreira Fonseca é editora chefe da Revista Trabalho, Educação e Saúde da Escola Politécnica de Saúde joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz); Marcia Valéria Morosini é professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz.
Fonte: Portal de Periódicos Fiocruz
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