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29/03/2016

Radis de abril destaca obstáculos no acesso a medicamentos

Elisa Batalha (Radis)


Em dezembro de 2015, o aposentado Pedro Plauska Filho recebeu, na Farmácia Estadual de Medicamentos Especiais, localizada na Praça Onze, região central do Rio de Janeiro, as caixas dos medicamentos sofosbuvir e daclastavir, indicados para 12 semanas de tratamento contra hepatite C e cirrose hepática. O sofosbuvir, de nome comercial Sovaldi, ficou conhecido como “a pílula de mil doláres”, em razão do valor que a empresa Gilead, produtora do medicamento, cobra nos Estados Unidos, onde fica a sede da multinacional. O caso motivou uma discussão mundial sobre patentes e acesso a medicamentos. A distância entre a doença e cura, para muitas pessoas no mundo todo, é intransponível graças à ganância da indústria farmacêutica. Com o argumento de que é preciso proteger a propriedade intelectual por meio de patentes, elas praticam monopólio e impõem preços exorbitantes aos seus “produtos”. Assim, sistemas de saúde e indivíduos passam a viver o dilema de serem obrigados a investir grande parcela do seu orçamento em “remédios de luxo”.

Pedro, de 67 anos, foi diagnosticado em 2008 e até então era tratado com injeções de interferon e comprimidos de ribavirina, aplicadas na barriga. O tratamento, além de doloroso, causava fortes efeitos colaterais. Com os novos remédios, o aposentado vem se submetendo a um tratamento que durará 24 semanas ao todo. Segundo ele, a situação agora é bem melhor. “É completamente diferente. O primeiro tratamento dava um mal-estar tremendo. Eu tinha emagrecido 15 quilos. Agora não passo mal, não sinto nada, e meus exames já dão negativo para o vírus”, conta, aliviado. O novo tratamento (aprovado pela agência reguladora americana em 2013 e posto no mercado em 2014) pode proporcionar aumento na taxa de cura para até 90% dos casos — contra cerca de 45% dos casos com o tratamento disponível anteriormente, que gera muitos efeitos adversos. Por este motivo, o medicamento é considerado a nova esperança para muitas pessoas infectadas pelo vírus, incluindo aquelas que têm coinfecção com o HIV.

Quando Pedro Plauska retirou gratuitamente os comprimidos ele não fazia ideia de que o preço cobrado pela empresa farmacêutica para fornecer o medicamento para o SUS foi 7.500 dólares (cerca de R$ 27 mil) por paciente, quantidade suficiente apenas para o tratamento de 12 semanas, o equivalente a um carro popular. De acordo com os cálculos feitos pelo Movimento Brasileiro de Luta contra a Hepatite C, o custo para o SUS do tratamento combinado dos dois medicamentos usados por Pedro Plauska, por exemplo, por 12 semanas, é de 9.500 dólares (R$ 37.700, considerando o dólar a 4 reais), e por, 24 semanas, de 18.900 dólares (R$ 75.400).

A Gilead somente autorizou a produção de medicamentos genéricos do sofosbuvir para sete laboratórios na Índia, que poderão vender os comprimidos a preços mais baixos. No entanto, esses valores só foram oferecidos a um número limitado de países, definidos pela própria empresa. O Brasil, considerado de maneira unilateral como país de renda média, assim como quase toda a América Latina, está fora da lista dos lugares para os quais a versão genérica poderá ser vendida.

Para se ter uma noção da disparidade de preços, a versão genérica do sofosbuvir vendida em outros países para um tratamento idêntico, de 12 semanas, custa em média 900 dólares por paciente (cerca de R$ 3.200) — custo estimado da produção é de 100 dólares (R$ 360) por paciente. Isso significa dizer que o valor que o SUS pagaria para tratar 60 mil pessoas daria para tratar 460 mil, caso o preço praticado fosse aquele do genérico, segundo estimativa do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (GTPI/Rebrip), coordenado pela Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia). “Defendemos sempre que o medicamento deve ser oferecido independente do custo. Mas onde é que está a universalidade do acesso? Com o preço que o governo acordou com o fabricante seriam necessários R$ 11 bilhões para tratar todos os que realmente precisam. É inexequível”, criticou Pedro Villardi, coordenador do grupo de trabalho.

Pedro informa que, de acordo com números da Abia, estima-se que existam 1,5 milhão de infectados pelo vírus da hepatite C no país; destes, 1,1 milhão estão em fase crônica e 216 mil com evolução para cirrose. Ainda segundo as estimativas, apenas 15 mil têm acesso ao tratamento hoje e era previsto que 30 mil receberiam medicamentos até o fim de 2015. “Optou-se pela estratégia de tratar só os que já estão muito graves”, apontou Pedro, que estudou a relação entre saúde pública, patentes farmacêuticas e acesso a medicamentos no mestrado em Saúde Pública que concluiu em 2014, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

“Quais são as possibilidades de se conseguir um preço justo e respeitoso para garantir o princí- pio da universalidade?”, questiona o pesquisador. Ele considera que não há disposição do governo em tomar medidas que possibilitem a queda no preço, porque iriam de encontro aos interesses da indústria farmacêutica. “O Brasil já tem tecnologia para produzir o sofosbuvir”, afirma, assegurando que o faturamento mundial da Gilead com o novo medicamento foi de 10 bilhões de dólares. “Não tem nada a ver com recuperar o investimento e inovação. Tem a ver com ganância. É um retrato da ganância”, diz. 

Continue aqui a leitura da matéria de capa da edição de abril de 2016 da revista Radis. 

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