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25/04/2017

Violência prejudica aulas e atividades na Fiocruz

Cátia Guimarães e Talita Rodrigues (EPSJV/Fiocruz)


Quinze dias sem aula no ensino médio integrado aos cursos técnicos. Outros 11 na Educação de Jovens e Adultos, contados a partir de 24 de março. Acrescente-se um tanto mais na pós-graduação e nos cursos voltados para trabalhadores do Sistema Único de Saúde (SUS). Isso sem contar os muitos momentos em que as aulas foram interrompidas por tiros, seguidos pela sirene que coloca em ação o plano de contingência. Nos últimos meses, esse tem sido o cotidiano da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), unidade técnico-científica da Fiocruz, instituição pública federal de ensino e pesquisa. E essa é apenas uma pequena parte da rotina de medo, risco e adoecimento a que 12 mil moradores da região de Manguinhos, zona norte do Rio de Janeiro, está submetida regularmente. “A gente está vivendo um momento excepcional de recrudescimento dessa ‘política de segurança’ executada nos territórios vulnerabilizados, nas favelas, nas comunidades mais pobres. A polícia entra atirando, os traficantes revidam e quem estiver no meio do caminho que se vire para não ser atingido”, denuncia o diretor da EPSJV/Fiocruz, Paulo César Castro Ribeiro.

Em meio ao contexto de violência deflagrada, a rotina tem lá suas variações. Há vezes em que o tiroteio para, viabilizando que, depois de um tempo, os alunos voltem para a sala de aula e cada profissional retome seus afazeres. Já quando não há previsão de retorno à ‘normalidade’, uma verdadeira operação de guerra é montada para evacuar o prédio e garantir que os estudantes voltem para casa em segurança. Nos dias em que a operação policial começa muito cedo, a tentativa é desmobilizar os alunos antes mesmo do início das aulas, evitando que eles se aproximem do tiroteio. Mas nem mesmo todos os esforços que a Fiocruz tem empreendido para minimizar os danos – por exemplo, disponibilizando ônibus para o transporte dos jovens até um ponto seguro nos momentos de confronto – têm sido suficientes.

Ao todo, calcula-se que 600 alunos estejam sem aula ou com o calendário escolar alterado. E o público é o mais variado possível: jovens e adultos, de educação básica, cursos técnicos, qualificações profissionais e pós-graduação. As origens também variam. Desde que adotou o sistema de cotas e o mecanismo de sorteio público para o ensino médio, a EPSJV tem recebido muitos jovens dos extratos sociais de mais baixa renda. Nos cursos de Educação de Jovens e Adultos, que acontecem no turno da noite, a maioria dos estudantes mora na própria região e tem sofrido duplamente os efeitos da intensificação da violência. “A gente na Fiocruz tem sido exposto de forma sistemática a esse fogo cruzado que tem resultado em mortes. Mas é importante lembrar que a comunidade que está nas favelas está sempre mais exposta”, alerta Paulo César. Shirley Campos da Silva, aluna do EJA da EPSJV que vive em Manguinhos há 20 anos, confirma: “Ficamos muito preocupados na hora de sair para estudar e trabalhar. E eu não vejo melhora. O que há são fases mais tranquilas e outras mais graves, como agora”.

Vítimas não faltam. Numa manhã aparentemente calma do último dia 17 de abril, uma bala perdida varou a janela de uma sala de trabalho da EPSJV/Fiocruz. No seu caminho, a cadeira e a mesa de uma trabalhadora, naquele exato momento, estavam vazias. Com o projétil, ninguém se feriu. Mas nesse e em outros dias de tiroteios intensos, vários profissionais da Escola precisaram ser encaminhados ao centro de saúde por causa da instabilidade emocional “Vivemos um nítido processo de estresse que caminha para um adoecimento coletivo da nossa comunidade”, aponta Paulo César, destacando que no interior das favelas onde ocorrem os confrontos as consequências têm sido ainda mais graves.

Foi durante uma dessas recentes e inesperadas incursões, por exemplo, que Evangelista Cordeiro da Silva, de 71 anos, foi morto na comunidade onde morava, localizada exatamente ao lado do campus da Fiocruz. Quatro dias depois, ganhou destaque no noticiário a morte da estudante Maria Eduarda Alves Pereira, de 13 anos, alvejada dentro de uma escola em Acari. Nos dois casos, estava em curso uma operação policial e testemunhas e exames preliminares apontam que a bala saiu da arma da polícia. “A gente precisa que as autoridades assumam responsabilidade nesse processo. Não é possível o Estado se ausentar e se isentar”, defende o diretor da EPSJV/Fiocruz, ressaltando que, além de todos os “abusos e exageros” que se identifica cotidianamente na ação policial, a sensação, agora, é de falta de comando em relação a essas incursões recorrentes.

Formas de enfrentamento

Só nas duas últimas semanas, já aconteceram diversas reuniões e assembleias com a participação de trabalhadores e estudantes da Escola Politécnica para debater e definir o que fazer diante desse problema. “Enquanto instituição pública, é papel da Fiocruz se mobilizar, se posicionar e atuar junto com outras instituições e organizações das comunidades atingidas para discutir questões relativas à política de segurança pública”, defende Paulo César. Por isso, as estratégias definidas passam tanto pela busca de outras medidas internas capazes de minimizar os riscos a que estudantes e trabalhadores da Fiocruz estão expostos quanto pela denúncia pública do papel que o Estado tem desempenhado nessa “verdadeira guerra”.

Foi também para discutir a violência na região que a coordenação da Educação de Jovens e Adultos da EPSJV/Fiocruz promoveu, ainda no dia 4 de abril, um ‘aulão’ com o tema ‘Pensando a violência armada em Manguinhos e Maré’, com a participação de integrantes de coletivos locais, além de alunos da EJA e do Pré-Vestibular Social, que também funciona na Escola no período noturno. “Não podíamos retomar às aulas após quase uma semana sem discutir o assunto que levou à suspensão das nossas atividades”, diz Michelle Oliveira, da equipe de coordenação da EJA. Após um debate no auditório, os alunos participaram de oficinas para debater os problemas causados pela violência e propostas para enfrentá-los.

A proposta da coordenação era que o tema tivesse continuidade em sala de aula, até porque as questões da violência estão sempre presentes nas discussões dos alunos da EJA, em sua maioria moradores das comunidades localizadas no mesmo território que a Fiocruz. No ano passado, inclusive, também após um episódio em que um jovem morreu e outros três ficaram feridos durante uma ação policial, alunos da EJA participaram da criação da Comissão de Enfrentamento à Violência de Manguinhos e da elaboração de uma carta de repúdio contra a violência armada nas favelas. Aluno da EJA desde 2014 e morador da Maré, Mateus Santos de Araújo achou o aulão interessante para conscientizar as pessoas e mobilizar os moradores. “Acho que a mobilização dos moradores pode ajudar a alcançar as autoridades para que mudem esse pensamento da polícia. Ela tem que ser mais bem preparada. Acho que a UPP [Unidade de Polícia Pacificadora] é um bom projeto, mas os policiais devem ter mais preparo porque eles lidam com pessoas nas comunidades”, diz. A sequência de operações policiais e tiroteios, com a conseqüente suspensão das aulas, no entanto, têm impedido a continuidade desse e de qualquer outro trabalho pedagógico com os estudantes.

Denúncia e reação

E não só os alunos da EPSJV/Fiocruz têm na instituição um espaço de acolhimento para o enfrentamento essa situação. Também mobilizados pela nova onda de violência, no dia 3 de abril foi realizada, nas instalações da Escola, uma reunião com a participação de integrantes de 17 coletivos da região de Manguinhos, além de representantes da Fiocruz e da Asfoc. No encontro, ficou definida a elaboração de uma carta coletiva para ser entregue ao governador e ao secretário de Segurança do Rio de Janeiro, além de ser apresentada na próxima reunião do Conselho Comunitário de Segurança, que acontece mensalmente em Bonsucesso, bairro vizinho a Manguinhos. “Vamos tentar entregar a carta por dois caminhos, pelo Conselho de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa e por meio da presidência da Fiocruz”, explica André Lima, do Conselho, que foi um dos participantes da reunião.

Segundo ele, o objetivo da carta não é fazer um “denuncismo vazio”, mas cobrar das autoridades que a polícia aja dentro da lei nas favelas, assim como age com cidadãos de outras regiões da cidade. “Qual a necessidade de entrar atirando na comunidade? Quando se tem um trabalho de investigação sério, prendem sem dar um tiro. Já quando entram sem planejamento, acontece o confronto, que não é eficaz e ainda prejudica inocentes”, diz André, que completa: “Sabemos que a carta não vai resolver porque há um projeto de poder que criminaliza os pobres e não vai ser revertido a curto prazo, mas é importante que esse assunto seja levado para a esfera pública e se faça o debate porque quanto mais tivermos o acirramento das desigualdades, mais aumenta a violência”.

Como parte da pauta da violência, o conselheiro destaca a importância de se debater a atual política de enfrentamento às drogas e destaca o papel importante que uma instituição de pesquisa em saúde como a Fiocruz pode desempenhar. “Estamos tentando promover um debate para refletir sobre a guerra às drogas e a criminalização do usuário. Temos que avançar nesse debate, que deve ser tratado no âmbito da saúde, educação e assistência social e não apenas na esfera da segurança pública. E acho que a Fiocruz pode ajudar a promover e dar o tom que precisamos para esse debate”, diz.

Nos 15 dias passados desde essa reunião, a situação de violência só fez piorar. E não foi só no território da Fiocruz. Por isso, no dia 13 de abril, profissionais, estudantes, moradores e representantes de instituições e movimentos sociais de Manguinhos, Jacarezinho, Maré, Rocinha e Cerro-Corá, todas regiões de favelas do Rio de Janeiro, se reuniram também na Escola Politécnica para discutir formas de enfrentar o problema. No final, foi produzido um documento, assinado por mais de 30 instituições, incluindo unidades da própria Fiocruz. O texto manifesta “preocupação e indignação com os seguidos confrontos armados e ações violentas no território”, critica “o uso repetido de armas de fogo e os constantes disparos efetuados por agentes de segurança pública” em locais onde há residência, áreas de lazer e equipamentos públicos. “Desde a crise criada no governo do estado do Rio de Janeiro, essa situação vem se tornando ainda mais grave e intensa (...). Pessoas em suas casas, em escolas, unidades de saúde, espaços culturais e demais locais de trabalho do território têm vivido diariamente repetidos momentos de terror e precisam se refugiar onde for possível para não serem baleados”, descreve o documento.

Ato contra a violência

Na Fiocruz, o agravamento da violência em Manguinhos e em outras regiões do Rio tem gerado ações integradas. Ainda no final do mês passado, no 31 de março, uma reunião entre a Presidência da Fiocruz, a direção da EPSJV e a Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp), coordenações ligadas à presidência e o Sindicato discutiu medidas para garantir a segurança das 12 mil pessoas que circulam diariamente pelo Campus Manguinhos e pelo prédio da Expansão. Na reunião, ficou definido que a presidência da Fiocruz entraria em contato com a Secretaria Estadual de Segurança para tentar estabelecer uma linha de diálogo permanente. Poucos dias depois, a Ensp voltou a tratar do tema numa reunião ampliada do seu Conselho Deliberativo.

Como desdobramento de todas essas articulações, foi realizado nesta terça-feira (25/4), na Fiocruz, um ato contra a violência em Manguinhos, com a participação de trabalhadores, estudantes, moradores e movimentos sociais da região. Depois continuarão os debates e ações integradas para se pensar os próximos passos. Uma coisa pelo menos é certa: sair do território não é uma opção. A luta, portanto, é para expulsar a violência e manter os equipamentos públicos. “A Fiocruz é Manguinhos e vai ficar em Manguinhos”, garante o diretor da EPSJV, Paulo César de Castro Ribeiro.

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