26/06/2013
Compreender o processo de emergência das medicinas tradicionais indígenas no campo das políticas públicas de saúde indígena é o objetivo do novo volume da coleção Saúde dos Povos Indígenas, da Editora Fiocruz. Em Medicinas indígenas e as políticas da tradição: entre discursos oficiais e vozes indígenas, a doutora em antropologia social Luciane Ouriques Ferreira analisa os discursos proferidos por uma diversidade de atores – indígenas e não indígenas, governamentais e não governamentais, nacionais e internacionais. Dessa forma, revela uma dinâmica que vai do global e ao local e transforma os contextos envolvidos, originando novas formações culturais.
As políticas públicas que qualificam os seus objetos e público-alvo com a categoria "tradição" conformam uma formação discursiva, definida pela autora como "políticas da tradição". Um exemplo são as políticas voltadas à saúde indígena, que têm buscado reconhecer a eficácia das medicinas tradicionais indígenas e articulá-las com o sistema oficial de saúde. No entanto, “ao serem apropriados pelos povos indígenas, os discursos oficiais são postos a serviço dos seus interesses culturalmente situados – assim, estamos diante do fenômeno da indigenização”, diz Luciane. De acordo com a autora, essa "indigenização" se refere aos processos “levados a efeito pelos povos indígenas ao se apropriarem das políticas públicas a fim de manter a sua autonomia e reverter a seu favor o controle que o Estado passa a exercer sobre o mundo da vida de suas comunidades”.
Para compreender tais processos, especialmente no âmbito da atenção ao parto e à saúde materno-infantil, a autora analisa diferentes discursos: os oficiais, isto é, das políticas públicas nacionais, aí incluídos os documentos produzidos pela Área de Medicina Tradicional Indígena (AMTI/Funasa/Ministério da Saúde), e dos organismos internacionais; e as falas indígenas sobre os cuidados com a gestação e o parto. Os enunciados indígenas analisados no livro ocorreram durante reuniões promovidas pela AMTI e realizadas na região do Alto Juruá, no Acre. Para melhor situá-las, a autora descreve a organização e a programação desses encontros, dos quais participaram parteiras, pajés e agentes indígenas de saúde.
Os diferentes discursos trazem concepções distintas a respeito do "tradicional". O Estado, muitas vezes, o enxerga como um conjunto de saberes e práticas transmitido de geração a geração, dentro de culturas aparentemente estáticas, enquanto os indígenas se referem a ela para demarcar as diferenças entre as suas formas de cuidado e as outras. Já o olhar da antropologia social, encontrado no livro, entende a tradição como “os distintos modos pelos quais as transformações socioculturais se processam mediante as tentativas dos povos indígenas de incorporarem o sistema mundial ao seu próprio sistema de mundo”.
Em relação aos cursos para parteiras, “as falas indígenas revelaram o quanto a realização desses cursos transformou a prática do 'pegar menino' no âmbito das aldeias indígenas, contribuindo para alterar os papéis e a própria organização comunitária do cuidado com a gestação e o parto”, conta Luciane. Também chamaram a atenção da pesquisadora as reivindicações dos participantes pela contratação remunerada das parteiras indígenas, que simbolizaria o reconhecimento delas tanto pelo Estado quanto pelas gestantes e suas comunidades. “Reflito sobre as implicações do contrato remunerado na organização dos cuidados comunitários com a gestação e o parto, na medida em que o reconhecimento profissional implica a regulamentação do ofício e a integração das parteiras ao sistema oficial de saúde”, adianta a autora. Com o livro, ela busca contribuir para a consolidação do direito indígena à atenção diferenciada à sua saúde, considerando as relações historicamente construídas entre povos indígenas e Estado.
Na AFN
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