12/03/2012
Danielle Monteiro
Cuidar dos mais pobres, das crianças, dos doentes, idosos e de todos aqueles que precisam de ajuda e atenção. Tarefas que, até a modernidade, eram associadas ao campo doméstico e ao poder senhorial-patriarcal, fazendo parte de um mundo predominantemente feminino. Já dos homens se esperava outro tipo de conduta: poder e ação no campo da política. Embora remetam a léxicos distintos, as palavras Estado, assistência e mulheres, se encontram, combinam e inter-relacionam. Esses elos, que unem essas diferentes palavras, foram objeto de estudo da historiadora Ana Paula Martins, no artigo Gênero e assistência: considerações histórico-conceituais sobre práticas e políticas assistenciais, publicado na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos da Fiocruz. O estudo incita uma reflexão teórica e histórica a partir da conjunção do conceito de gênero e da noção de assistência.
Tela A caridade (1872), de Zeferino da Costa (Acervo MNBA) |
Do dever moral à política assistencial do Estado moderno
O conceito dicotômico que opõe a política ao cuidar esteve presente por um longo tempo no pensamento político. Conforme revela o artigo, a concepção aristotélica, por exemplo, enxergava as atividades do cuidar como secundárias e inferiores à política, situando-se em um plano pré-político. E esse lugar, reservado aos cuidados, deveria ser ocupado pelas mulheres. Porém, quando surge a formulação cristã da caridade, o conceito sobre o cuidar muda e passa a ser extremamente valorizado e associado com a compaixão pelos mais necessitados, inserindo as atividades do cuidar em um lugar à parte, no qual, ao contrário do pensamento aristotélico, a marca do gênero não é determinante. “Como os cuidados não estão associados à política, mas à vida religiosa e à dimensão espiritual, tanto homens quanto mulheres podiam ter ou desenvolver o dom da caridade”, constata Martins.
No entanto, ainda assim a esfera do cuidar era ocupada predominantemente pelas mulheres e a dicotomia entre política e o cuidar se mantiveram. “Mesmo que católicos e protestantes não estabelecessem os cuidados como sendo atribuição exclusiva das mulheres, na prática cotidiana e na constituição das instituições caritativas, as mulheres sempre foram predominantes; do mesmo modo, na atribuição das qualidades femininas a caridade tinha tanta importância quanto a virtude e a modéstia”, explica a historiadora. Segundo ela, a predominância de mulheres no campo do cuidar foi impulsionada pela mariolatria e hagiografia que, propagadas no mundo cristão medieval, reforçavam a associação entre caridade e feminilidade.
Entretanto, conforme mostra o estudo, três fatores ocorridos em meados do século 19 alteram a concepção aristotélico-cristã, dando início à problematização política do cuidar: a organização de instituições, a elaboração de uma legislação com o intuito de reduzir os efeitos da extrema pobreza urbana e a reformulação da filosofia política. “Ao definir a alteridade do Estado, o pensamento político também ampliou as suas atribuições no que se refere aos cuidados”, constata Martins. O Estado passa, então, a intervir no campo da caridade e dos cuidados com os necessitados, facilitando a interlocução entre os sujeitos participantes dessas duas esferas e, com isso, a ingressão de práticas e valores femininos na política.
Do gênero da assistência à política de gênero
A junção da concepção religiosa com a filosófica teve como resultado uma definição moral utilitária das mulheres, revela o estudo. Esse novo modelo de mulher que surge é constituído não mais pelas ambicionadas pelo mundo das letras e da filosofia, tampouco pelas aristocratas oriundas do superficial mundo das aparências. “O lugar das mulheres estava bem definido: era o lar, como esposas amorosas, mães dedicadas e senhoras benevolentes”, afirma a historiadora. Com a crescente participação feminina na filantropia e sua ligação com o lugar de gênero das mulheres, essa área passou a ser vinculada à feminilidade e, consequentemente, vista como uma atividade feminina. “É interessante notar como as profissões femininas para mulheres de classes médias e educadas foram definidas em áreas de atuação coerentes com essa construção de gênero da assistência, como a enfermagem e a medicina, o magistério e, posteriormente, o serviço social”, observa Martins.
Segundo ela, por meio da filantropia as mulheres passaram a exercer uma função cada vez mais pública, uma vez que essa área não se opunha à ideologia da domesticidade e se fundamentava na ideia de extensão da maternidade. Mas é com o surgimento do maternalismo - movimento que exaltava as virtudes privadas da domesticidade e, simultaneamente, legitimava as relações das mulheres com a vida pública e política – que é dado um pontapé na formulação das políticas de gênero conduzidas pelos Estados liberais a partir do século 19. “O ativismo feminino maternalista a princípio expõe um paradoxo, pois a experiência e os valores associados ao mundo dos cuidados e da vida privada foi o que permitiu, para muitas mulheres, cruzar essa fronteira e atuar no mundo político”, constata a historiadora.
O estudo mostra, portanto, que foi a partir da assistência, fundamentada em uma ideologia excludente e restritiva, que as mulheres sabiamente transformaram a exclusão em ação. “Ao fazê-lo, as mulheres contribuíram para a elaboração de uma política de gênero orquestrada pelos estados de bem-estar social, que, apesar das limitações, procurou responder às necessidades mais urgentes nas áreas de saúde, renda, alimentação, moradia, seguridade social e educação”, conclui a historiadora.
Publicado em 12/3/2012.