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14/09/2020

Covid-19: 'Cadernos' aborda investigação em serviços de saúde

Informe Ensp


A revista Cadernos de Saúde Pública (CSP) de setembro, que já está on-line, aborda a investigação em serviços de saúde e a pandemia de Covid-19. A editora emérita de CSP, Claudia Travassos, escreveu o editorial. “Luto pelas pessoas que já faleceram em nosso país em decorrência da pandemia de Covid-19. Luto, por saber que parte desses óbitos poderiam ter sido evitados. A estrutura de governança do SUS, desenvolvida com sucesso ao longo de muitos anos, foi deixada de lado numa intencional e inexplicável ação governamental que parece querer deixar a epidemia seguir o seu curso quase que natural”, lamenta.

Travassos destaca que, em contraponto à omissão do Governo Federal, alguns governos locais, profissionais de saúde, especialistas das mais diversas áreas do conhecimento, parlamentares, juristas e movimento social se engajaram no debate e na luta pela mitigação dos efeitos da pandemia. Imbuídas por esses motivos, entidades organizadas na Frente pela Vida, com a liderança da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), lançaram o Plano Nacional de Enfrentamento à Covid-19. “São planos, propostas e debates que entre outros aspectos trouxeram para o centro das atenções os serviços e os sistemas de saúde. A oferta de leitos de UTI, de ventiladores mecânicos, o papel da atenção primária de saúde, a disponibilidade de equipamentos de segurança individual e a eficácia dos medicamentos na profilaxia e tratamento da Covid-19 tornaram-se preocupações da sociedade, escapando dos limites dos especialistas para serem por todos debatidas”.

Por tratar-se de uma doença desconhecida, acrescenta Travassos, trouxe consigo desafios aos mais diversos âmbitos de ação, dentre eles, à área de investigação em serviços de saúde. Desde o início da pandemia o esforço da ciência na identificação e desenvolvimento de esquemas terapêuticos e preventivos eficazes e seguros ocorre numa velocidade e intensidade nunca vistos. “Os preceitos de Dr. Archie Cochrane, médico inglês que, no início da década de 1970, chamou a atenção para a importância de se conhecer a eficácia (denominada “efetividade” pelo autor) dos procedimentos de saúde por meio de ensaios clínicos controlados, abrindo caminho para o surgimento da Avaliação de Tecnologias em Saúde (ATS) e da Medicina Baseada em Evidência, ganharam destaque em todo o mundo. Cochrane em seu famoso livro Effectiveness & Efficiency: Random Reflections on Health Services, atentou para o grau de desinformação existente na sociedade naquela época, tal como hoje em dia, em que muitas pessoas não distinguiam a opinião de evidência científica, ao enfatizar a importância desta para a adoção de novos procedimentos no cotidiano do cuidado de saúde. Destacou a relevância da avaliação em saúde para orientar a decisão profissional e garantir efetividade ao cuidado de saúde, diminuindo o sofrimento, as sequelas e salvando vidas. Suas reflexões sobre a eficácia foram além dos procedimentos preventivos, diagnósticos e terapêuticos ao incorporarem a organização dos serviços de saúde e o processo de cuidado. Tratou também da questão da igualdade social e territorial no cuidado de saúde, trazendo à baila temas estruturantes da investigação em serviços de saúde que hoje perpassam os debates sobre os desafios envolvidos na mitigação dos danos causados pela pandemia”.

Para Travassos, as transformações em curso nos sistemas e serviços de saúde afetarão os ambientes de cuidado e podem ocasionar o agravamento das desigualdades sociais e territoriais no acesso a cuidado de saúde efetivo. “Os grandes negócios que cada vez mais envolvem o desenvolvimento e a comercialização de equipamentos, medicamentos e imunobiológicos apontam para o aumento do gap entre necessidades de saúde e oferta de cuidados de saúde. São as sociedades democráticas, que valorizam e fortalecem a ciência, que melhor poderão se organizar para responder às incertezas do futuro de modo a preservar vidas”, finalizou ela.

No Espaço Temático deste fascículo sobre a avaliação em saúde são publicados artigos cujos autores representam renomados pesquisadores. No artigo A avaliação de programas de saúde: continuidades e mudanças, Lígia Maria Vieira-da-Silva e Juarez Pereira Furtado, consideram que um aspecto pouco explorado tem sido a superposição de objetos, conceitos e metodologias que, por vezes, não estabelecem diálogo entre si. Em que medida tem havido uma incorporação das proposições teórico-metodológicas dos autores fundadores da disciplina nos trabalhos subsequentes? Em que medida esses modelos têm sido contestados e substituídos ou aperfeiçoados? O ensaio pretende contribuir com essas questões e oferecer uma melhor compreensão acerca do desenvolvimento do espaço da avaliação de programas de saúde, buscando atualizar o debate na área, por meio da análise e da discussão de algumas abordagens presentes na produção científica relacionada a essa temática.

Outro artigo temático é Investigação em serviços de saúde: alguns apontamentos históricos, conceituais e empíricos, de Mônica Martins, Margareth Crisóstomo Portela e Marina Ferreira de Noronha, que observam que a investigação em serviços de saúde ou pesquisa em (ou sobre) serviços de saúde - traduções adotadas no Brasil para pesquisa em serviços de saúde (health services research - HSR) - é um campo multidisciplinar que trata de temas relacionados ao desempenho de sistemas e serviços de saúde, acesso e utilização de serviços, qualidade do cuidado e custos. Considerando-se o conhecimento acumulado ao longo de décadas, este artigo apresenta uma visão geral e pretende servir como um convite a uma revisita à literatura sobre o campo. A experiência acumulada é instigante, aporta contribuições teórico-metodológica e prática, com questões que evoluíram no tempo, acompanhando o aumento da complexidade dos sistemas de cuidados de saúde. Espera-se inspirar pesquisadores a examinar, aprofundar e produzir evidências que subsidiem, no presente, a sociedade e tomadores de decisão o esboço de uma agenda para garantir acesso, qualidade e equidade no Sistema Único de Saúde (SUS). Nessa agenda, a sustentabilidade de sistemas de saúde de qualidade é colocada como um desafio global.

A Avaliação das Tecnologias em Saúde: origem, desenvolvimento e desafios atuais - Panorama internacional e Brasil é o artigo de Hillegonda Maria Dutilh Novaes e Patricia Coelho De Soárez. Em uma perspectiva histórica, a expansão e difusão da ATS pode ser dividida em três fases: fortalecimento como campo científico (1978-1987), legitimação nas políticas (1988-2002) e institucionalização e desenvolvimento internacional (2003-2013).

No período inicial, as atividades da ATS estiveram direcionadas ao desenvolvimento de metodologias de produção de novas formas (tecnologias) de utilização do conhecimento científico para viabilizar a imediata aplicação na gestão dos sistemas de saúde. O uso adequado e inovador do conhecimento científico e técnico garantiria sua legitimidade enquanto análise objetiva e neutra, com relação aos potenciais conflitos de interesse existentes, e a maximização dos benefícios para os pacientes e os sistemas de saúde. No entanto, ao longo do tempo e dadas as dificuldades enfrentadas pelas organizações responsáveis pela produção e pela disseminação dos estudos de ATS, houve o reconhecimento progressivo de que as decisões sobre a incorporação e a utilização de tecnologias nos sistemas de saúde são também sempre políticas. Essas decisões não se sustentariam unicamente em bases científicas e técnicas e deveriam ser apresentadas como decisões que buscam equilíbrio entre interesses concorrentes, apoiadas não apenas no conhecimento científico estrito senso, mas também em outros tipos de conhecimento, como as dimensões éticas, políticas e culturais.

Desenvolvimento da avaliação em saúde: percursos e perspectivas, artigo de Lilia Blima Schraiber, que aborda considerações sobre os três textos anteriores. Segundo ela, eles trazem, em uma linha do tempo mapeadora das diversas produções nacionais e internacionais concernentes à avaliação em saúde, cuidadosa classificação dos conteúdos ora mais ora menos convergentes entre si, apontando para as especificidades de cada uma dessas correntes de pensamento em avaliação, em termos das principais contribuições dos estudos e das respectivas identidades teórico-metodológicas. Com isso, apresenta-se rico percurso da temática da avaliação em saúde em direção a perspectivas futuras.

Na opinião de Lilia, a investigação em serviços de saúde é situada como a corrente que, sem intitular-se com ou definir o termo “avaliação”, está voltada para os serviços em seus processos produtivos, englobando aí temas e questões de diferentes ordens quanto à articulação das práticas em saúde com o social.

Trata-se de um território mais amplo do que os outros dois subdomínios da avaliação em saúde: o da avaliação de programas e aquele das tecnologias. Lidos esses três artigos nessa ordem, disse Lilia, produz-se a percepção de um percurso em que, progressivamente, a partir de um escopo global dos serviços de saúde, ocorrerá maior delimitação de objetos, com consequentes efeitos nas escolhas metodológicas e nos quadros teórico-conceituais. Vai-se produzindo um afunilamento e crescente especificação de parcelas daquele amplo território: os objetos de estudo e seus desenhos ganham recortes mais definidos e delimitados em movimento de especialização do conhecimento produzido.

Assim, essas três correntes de pensamento nos estudos sobre e em serviços de saúde têm em comum a realidade desses serviços como um todo na base de suas questões, e também têm em comum as perspectivas interdisciplinares como método de abordagem,  de acordo com o artigo. Entretanto, à medida que se desenvolvem os estudos em avaliação de programas e mais ainda os de tecnologias, esses elos vão se tornando mais tênues a ponto de caber a indagação, nos dias mais atuais, sobre quais as relações entre as duas modalidades de avaliação, a de tecnologias e a de programas, e se as avaliações ainda pertencem ao mesmo escopo dos estudos da investigação em serviços.

Para Lilia, se a preocupação historiográfica dos três textos reforça o reconhecimento dos elementos sócio-históricos comuns na origem desse movimento do conhecimento em saúde em direção aos serviços, em termos do desenvolvimento epistemológico e metodológico de cada corrente de pensamento, é a dispersão, o afastamento entre elas, na busca por especificidades individualizantes, o que mais chama a atenção, ainda que isso ocorra em perspectivas e ritmos desiguais entre si. A tal ponto isso se configura como uma relevante questão que os autores dedicam importantes reflexões sobre os limites e possibilidades dessas autonomias. No referencial de Bourdieu adotado pelos autores do texto sobre avaliação de programas, tal dispersão, eu diria, reforçando o pensamento desses autores, impacta elementos centrais da constituição de um campo como, por exemplo, a formação do habitus de seus agentes.

Contudo, historicamente, tal busca por parcelamento e conformação segmentar autônoma de saber e prática pode ser vista como um traço da modernidade, com a progressiva valorização de uma sociedade de especialistas. Trata-se da valorização do conhecimento cada vez mais especializado e da autoridade maior de quem o detém. O artigo finaliza: o próprio reconhecimento da biomedicina moderna como saber de maior autoridade em termos de saúde é produto e produtor dessa valorização. Entretanto, por que a especialização, com autonomia do segmento que se especializa, é questão relevante, sobretudo, para nós da saúde coletiva?

Confira aqui os demais artigos do CSP de setembro.

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