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06/07/2015

Drogas lícitas e ilícitas: bom senso e objetividade

Francisco Inácio Bastos*


O debate sobre a regulação de drogas vem sendo constantemente turvado e mesmo impedido por um discurso supostamente científico, que se combina, de forma habitualmente contraditória, a uma interpretação moral. Curiosamente, as supostas bases científicas, ancoradas na ciência biomédica, documentam, de forma consistente, o oposto do que é dito acerca das diferentes substâncias psicoativas lícitas (como o álcool e o tabaco) e ilícitas (geralmente designadas “drogas”).

A própria divisão das substâncias em lícitas e ilícitas não guarda qualquer relação com sua potencial toxicidade e capacidade de gerar danos e flutua, não apenas no tempo, como ao longo das sociedades e culturas. Por exemplo, o álcool é uma substância ilícita nos países que adotam a sharia (código islâmico), e já teve seu uso proibido por uma emenda constitucional (a 18ª emenda) nos EUA nas décadas de 1920/30.

Os estudos recentes demonstram de forma convincente que o álcool e o tabaco têm propriedades farmacológicas e impactos sobre o organismo humano e o psiquismo bastante mais danosos do que a maconha. Talvez em função da inegável sofisticação metodológica dos estudos mais recentes, que exigem do potencial leitor familiaridade com as ciências biomédicas e com métodos quantitativos refinados, esses estudos costumam ser simplesmente ignorados, quando não desqualificados.

À falta de argumentos científicos, costuma-se desqualificar academicamente os autores e/ou caracterizá-los a partir do estereótipo (fortemente estigmatizado) do jovem ativista, de tendências libertárias, quando não usuário habitual do conjunto de substâncias que analisa. Curiosamente, não poderia haver perfil mais antitético ao estereótipo do que o dos professores David Nutt (Imperial College, Reino Unido), e D. W. Lachenmeier, (Universidade de Dresden, Alemanha), autores dos melhores artigos recentes sobre o tema.

A maconha se insere de forma particularmente problemática nessas classificações, políticas e legislações em função das suas inegáveis propriedades medicinais, dos quais é testemunho um dos seus subprodutos — o canabidiol, recentemente aprovado pela Anvisa no tratamento da síndrome de Dravet.

Quem, como eu, lida há 35 anos com pessoas que fazem uso abusivo de substâncias psicoativas jamais advogaria propostas absurdas. Muito ao contrário, urge que as pessoas tenham o direito de lançar mão de todos os recursos terapêuticos que lhes possam ser benéficos, a salvo de sanções penais, que seja possível fazer pesquisas empíricas de qualidade, sem que cada passo seja considerado uma incitação ao uso, e que possam receber tratamento digno, e não encarceradas e privadas de tratamento exatamente quando dele (tratamento) mais necessitam. Obviamente, substâncias cujo uso e venda são regulados por facções criminosas estão longe de qualquer regulação real, seja na sua composição, no acesso por parte de segmentos vulneráveis, como crianças e adolescentes, e aquisição em contextos de violência e abuso.

A sociedade precisa debater livremente, sem mitos, garantindo decisões mais avançadas nos campos legislativo, judiciário e executivo.

*Francisco Inácio Bastos é pesquisador da Fiocruz

O artigo foi originalmente publicado no jornal O Globo (RJ) em 3/7/2015.

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