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12/08/2016

Livro aborda desinstitucionalização na saúde mental

Fernanda Marques (Editora Fiocruz)


Disse certa vez o célebre arquiteto Oscar Niemeyer: “O que me atrai não é o ângulo reto, nem a linha reta, dura, inflexível, criada pelo homem. Me atrai a curva livre e sensual, a curva que encontro nas montanhas do meu país, no curso sinuoso dos rios, na onda do mar, no corpo da mulher preferida. De curvas é feito o universo inteiro, o universo curvo de Einstein”. Palavras que inspiraram o título do novo livro da Editora Fiocruz, A Linha Curva: o espaço e o tempo da desinstitucionalização, de Ernesto Venturini, psiquiatra que contribuiu ativamente para a reforma psiquiátrica na Itália. “Com efeito, a desinstitucionalização é como a linha curva de que fala Niemeyer, uma linha oposta à rigidez do pensamento manicomial”, afirma Venturini, que acompanhou a reforma psiquiátrica brasileira.

Como assessor da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), o autor esteve várias vezes no Brasil, onde, em encontros com gestores da saúde, profissionais, usuários e cidadãos, falava de sua experiência na Itália. Escritos que foram temas desses encontros estão agora reunidos no livro A Linha Curva, que tem tradução de Carlos Moulin Louzada e integra a coleção Loucura & Civilização. A prática, a dialética do poder, o protagonismo da subjetividade, o espaço e o tempo da desinstitucionalização são os tópicos em torno dos quais o autor organiza suas reflexões. “Reconheço que falar de desinstitucionalização, em termos teóricos e acadêmicos, não me interessa e é algo que não me pertence”, destaca Venturini.

Os textos que compõem a obra foram produzidos entre os anos 80 e o início de 2000. Não são, portanto, textos recentes, mas levantam discussões que permanecem atuais. Venturini insiste na importância do tema da desinstitucionalização e, no livro, aborda questões que não foram superadas e merecem ser revisitadas. “Dar alta aos pacientes de prolongado internamento em hospitais psiquiátricos, inseri-los no território, reduzir o número de vagas em leitos hospitalares e converter recursos hospitalares em serviços comunitários é um processo ainda em vias de realização na maior parte dos países europeus e americanos. E quando isso ocorre, é frequentemente mal feito e realizado de forma apenas parcial”, avalia.

Para o autor, essa situação é causada, em grande medida, pelas políticas neoliberais e seus cortes significativos no orçamento da saúde pública. Mas Venturini não deixa de apontar também a parcela de responsabilidade que têm os profissionais da saúde, que, após uma entusiasmada adesão às novas perspectivas antimanicomiais, deixam-se abater pela impaciência e o cansaço diante das dificuldades de realizar plenamente a desinstitucionalização.

Nesse contexto, costumam surgir novas propostas, mas, de acordo com Venturini, é preciso cuidado para que elas não sirvam “tão somente para deixar para trás os problemas não resolvidos”. Observa o autor que, muitas vezes, o paciente é tratado não como pessoa, mas como um objeto da intervenção médica, uma conduta da velha disciplina psiquiátrica que ainda se manifesta em toda a medicina, inclusive na nova psiquiatria e na psicanálise. Daí a exigência de manter sempre viva a crítica ao poder institucional da disciplina psiquiátrica.

Outra questão discutida no livro se refere à própria ambiguidade que o termo desinstitucionalização carrega. “A desinstitucionalização indica, por um lado, um simples processo de desospitalização; por outro, indica um processo de mudança radical do paradigma da psiquiatria. Nesse último caso, a superação do hospital psiquiátrico não se refere simplesmente à superação de uma estrutura física – os muros do manicômio”, explica o autor. Ou seja, para realizar plenamente a desinstitucionalização, é preciso, conforme argumenta Venturini, não só superar os muros do manicômio, mas romper com as estruturas segregadoras que persistem na sociedade – uma tarefa que depende do envolvimento de trabalhadores, gestores públicos, políticos e cidadãos.

“Na desinstitucionalização, tudo se torna diferente se o setting mudar: a resposta é diversa se as ações tiverem lugar seja em um consultório, em uma unidade fechada, em uma unidade aberta, em uma praça cheia de gente e de crianças, em uma festa ou, ainda, em um espaço coletivo de reinserção no trabalho”, exemplifica Venturini. “Minha experiência ensina que o espaço pode ser um agente propulsor para a desinstitucionalização, assim como o tempo da terapia, quando se respeita o tempo interior da pessoa”, acrescenta.

A experiência do autor no processo de desinstitucionalização em Ímola, na Itália, é tema de um dos capítulos de A Linha Curva. Antes, Venturini já trabalhara com Franco Basaglia, fundador do movimento italiano de reforma psiquiátrica, também conhecido como psiquiatria democrática. “A caraterística fundamental da psiquiatria democrática, em sua radicalidade, consiste na passagem do perceber-se rumo ao realizar-se. É a prática dos direitos e da singularidade que curam: só assim a cidadania é realmente terapêutica”, defende Venturini. 

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