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26/05/2011

Artigo comenta disposição de Bill Gates de dedicar bilhões para eliminar a malária

Cláudio Tadeu Daniel-Ribeiro e Patrícia Brasil


Cerca de 60% da população do planeta está exposta ao risco da malária. Estamos falando de 6 em cada 10 homens, mulheres e crianças que vivem sobre a Terra. Mas, por que uma doença que atinge tão amplamente a Humanidade ainda se coloca como um problema? E por que não povoa todos os dias as páginas dos jornais? A resposta é simples, triste e preocupante na mesma medida: a malária é um daqueles agravos que atinge preferencialmente países e pessoas pobres.

 

 

A distribuição desigual que ocorre em nível global se reproduz internamente nos 333 mil casos registrados no Brasil em 2010 - 99,6% deles concentrados na Região Amazônica. Fora dessa área, a malária ocorre, sobretudo, entre viajantes, que circularam em regiões endêmicas e chegam doentes a seus locais de origem. Ou seja: enquanto, para parte do país, a malária é uma doença próxima, familiar e presente no cotidiano, em toda a Extra-Amazônia a malária é uma doença exótica e distante.

Todos os anos, o 25 de abril marca o Dia Mundial de Luta Contra a Malária. A data faz sentido para lembrar aos povos dos países que sofrem com a endemia (geralmente em desenvolvimento e no hemisfério sul) sobre a necessidade de se irmanarem na busca de estratégias de combate à doença. A data é também referência para profissionais e gestores de saúde de agências internacionais, como as organizações Mundial e Panamericana de Saúde (OMS e Opas), que vivem o desafio de identificar estratégias de luta que possam ter o maior impacto possível em distintas realidades epidemiológicas em 106 países. A data é, finalmente, oportunidade para que cientistas tanto dos países afetados pela transmissão da doença quanto dos desenvolvidos - aos quais geralmente é atribuído o maior quinhão do financiamento científico - sensibilizem os tomadores de decisão a aumentar o volume de recursos destinados ao apoio de investigações susceptíveis de alterar a realidade da transmissão, dos métodos diagnósticos, do arsenal terapêutico e das estratégias de prevenção da doença, incluindo o desenvolvimento de uma vacina, recurso ainda inexistente no arsenal de luta.

Não são poucos os desafios gerados por esta doença, que é transmitida por um mosquito e causada por um parasito que infecta e destrói glóbulos vermelhos do sangue. O mosquito vetor, que precisa alimentar-se com sangue para completar seu ciclo reprodutivo, se tornou resistente a diversos inseticidas, o que coloca obstáculos para seu controle. O tratamento dos casos - feito primeiramente com a quinina, extraída da casca da quina no século 16, e depois com a cloroquina, obtida por síntese química nos anos 40, e atualmente baseada em terapias combinadas à artemisinina, cujas propriedades anti-maláricas foram identificadas pelos chineses há dois mil anos - tem sofrido reveses sucessivos com o desenvolvimento de resistência do parasito às drogas disponíveis. Muitos fatores contribuem para a enorme demanda por pesquisas científicas com foco no desenvolvimento de novas drogas e de uma potencial vacina que poderia impactar de forma importante o controle da transmissão no planeta.

A concentração da doença em países pobres (e, dentro destes, em populações de menor expressão política, social e econômica) não ajuda. Vejamos a situação do Brasil, usando a mais simples matemática: 99,6% dos casos registrados no último ano ocorreram na região Amazônica, que, embora, ocupe por volta de 50% da superfície territorial brasileira, abriga 12% da população e responde por cerca de 8% do Produto Interno Bruto (PIB).

Grandes empresas farmacêuticas são menos atraídas para o desenvolvimento de fármacos e vacinas para doenças de gente pobre. É, portanto, fundamental que autoridades sanitárias nacionais e profissionais de agências internacionais comprometidas com a saúde humana no terceiro milênio se associem ao mundo corporativo na definição de políticas globais, que, considerando que só existe uma categoria de cidadãos no planeta, vise livrar a todos do flagelo da malária nas próximas décadas. Essa foi a provocação de Bill Gates, que afirmou pretender dedicar os seus próximos anos de vida e bilhões dos dólares que amealhou com a Microsoft para eliminar a malária do planeta.

Se, por um lado, não há nenhum consenso sobre a exequibilidade de tal objetivo em curto prazo, por outro, também não há nenhuma dúvida de que tal discurso, que ressuscita a política (e o desejo) de erradicação da malária proposta pela OMS nos anos 50 e abandonada nos 80-90, nos enche de esperança de que ela agora possa ser bem sucedida. De fato, temos agora ferramentas indisponíveis nos anos 50: testes de diagnóstico rápido e fácil utilizáveis no nível das comunidades, as chamadas terapias combinadas altamente eficazes contra o parasito e o uso em larga escala de mosquiteiros impregnados por inseticidas.

A boa notícia é que existem, sim, recursos tanto técnicos quanto financeiros que, aplicados conjuntamente, podem conduzir ao êxito de uma iniciativa desse escopo e natureza. O controle da malária depende, hoje, mais do foco na solução do que propriamente no desenvolvimento científico. O desafio é agregar esforços para que, drenada pela vontade, a solução aconteça na prática para os 225 milhões casos e para os mais de 780 mil óbitos que, todos os anos, insistem em acontecer.

*Cláudio Tadeu Daniel-Ribeiro é médico imunologista e doutor em biologia humana. Patrícia Brasil é médica infectologista e doutora em ciências. Ambos são pesquisadores da Fiocruz.

**Este artigo foi publicado na Editoria de Opinião do Jornal do Commercio, em 19 de maio.

Publicado em 26/5/2011.

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