Início do conteúdo

03/04/2017

Seminário discute impactos da transposição do rio São Francisco

Solange Argenta (Fiocruz Pernambuco)


Nesta última semana de março, a Fiocruz Pernambuco recebeu um público que raramente tem espaço, como protagonista, na academia. Índios, pequenos agricultores, movimentos sociais do interior do estado e quilombolas, tiveram vez e voz de dialogar com pesquisadores e estudantes do campo da saúde, cineastas, historiadores, antropólogos e outros setores da sociedade sobre os impactos que a transposição do rio São Francisco tem causado nas suas vidas. O evento denominado Rio São Francisco: margens em tensão – transposição, injustiças e territorialidades foi apresentação dos resultados, mais gerais, advindos de uma pesquisa que vem sendo desenvolvida no departamento de Saúde Coletiva (Nesc), da instituição, intitulada Estudo ecossistêmico das populações vulnerabilizadas nos territórios de abrangência do Projeto de Integração do Rio São Francisco. A coordenação do estudo, realizado no período de 2012 a 2014, foi do pesquisador André Monteiro Costa.

Eventou serviu para dar voz às pequenas populações "invisíveis" atingidas pelas obras (Foto: Fiocruz Pernambuco)
 

“A ideia desse seminário é compreender as políticas que envolvem o semiárido, quais as perspectivas nas quais esses projetos são impostos e como as comunidades tradicionais são afetadas pelos mesmos”, disse André na abertura do evento. Embora como resultado dos dois anos de investigação tenham sido geradas tese (em andamento), dissertações e artigos científicos (também em andamento) sobre o tema, aqueles que estiveram no papel de “objeto de pesquisa”, no caso as populações vulneráveis já citadas, também atuaram como protagonistas do estudo ao serem as únicas vozes num filme chamado Invisíveis.

A opção de gerar um audiovisual além das já tradicionais publicações científicas (artigos, teses etc) foi a maneira que a equipe de pesquisa encontrou de levar a discussão para toda a sociedade, bem como dar voz as pequenas populações atingidas pelas obras da transposição que, midiática e socialmente, permanecem, como diz o título, invisíveis no jogo econômico-político que envolve a obra. No evento, a cineasta Aline Portugal falou da imagem como disputa e construção de territórios simbólicos e políticos. Ou seja, não só o rio São Francisco e a transposição estão em disputa, como a produção e exibição dessas imagens disputam versões sobre a obra e seus impactos. Essa oportunidade de ter voz e espaço para defender o seu discurso e posicionamento ficou clara nos agradecimentos feitos pelo cacique da etnia Pipipã, Valdemir Lisboa, ao pessoal da pesquisa. “Ficamos muito satisfeitos pelo nível, pelo resultado e por estarmos aqui participando desse momento. Nos sentimos agraciados e contemplados pelo trabalho que eles fizeram”, afirmou o cacique.

Como um dos palestrantes do evento, Valdemir definiu a obra da transposição no território Pipipã como um “estupro” e explicou o porquê. “Eu sempre usei na defesa do nosso território o termo ‘estuprar’, que era mesmo para incomodar os ouvidos. Porque se eu disser ‘Rasgou o território’, rasgar é simples. Estuprar deixa marcas, deixa sequelas, deixa dores e é isso que essa obra monstruosa fez ao nosso território”, concluiu.

O testemunho sobre a violência com que o projeto de transposição tem provocado nos territórios dessa população vulnerável é comum a todos. São famílias separadas pelo canal, sítios arqueológicos e espécies sagradas destruídas, indenizações irrisórias, promessas não cumpridas e a total invisibilidade e solidariedade diante daqueles que de fato podem mudar os seus destinos. Como disse Rubens Siqueira, representante da Comissão Pastoral da Terra, que também compôs uma das mesas do seminário “Na disputa pela paternidade do projeto pela direita e pela esquerda (política), quem ficou órfão foi a verdade”.

O sentimento de abandono por parte do poder público é outro sentimento comum a todos os grupos vulneráveis. Ameaças, desrespeito pela história dos povos e lugares e tristeza também estão presentes em cada um dos depoimentos, que podem ser conferidos no filme.

Portal web

Outro produto fruto da pesquisa foi a criação do Portal Beiras d´Água, também lançado durante o seminário. Nele, segundo explicou o André Monteiro, um dos responsáveis por sua criação, junto com o cineasta Bernardo Vaz, pode ser encontrado um grande acervo de vídeos, imagens e dados, produzidas por instituições de pesquisas, movimentos sociais, instituições públicas que trabalham com cultura, relacionadas a este tema. A ideia é construir um acervo vivo, um acervo sempre em construção. “Descobrimos também que há muita coisa já digitalizada, mas que ainda não foi disponibilizada na web. A ideia é identificar nesses territórios, nas microrregiões, instituições, movimentos sociais, grupos acadêmicos para exatamente visibilizar processos, sujeitos, caminhos estabelecendo uma relação de parceria. Esperamos que o portal seja um espaço onde possamos buscar dados não só para esta pesquisa, mas para qualquer outra que aborde o tema da bacia hidrográfica do São Francisco”, explicou o coordenador.

Fechando o encontro, o representante do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais do  Apodi, Agnaldo Fernandes, e a professora da Universidade do Ceará, Raquel Rigotto, falaram respectivamente da experiência da luta, de resistência, pelo movimento social em parceria com a academia, no enfrentamento da chamada  crise civilizatória. “Cabe à academia, ao campo cientifico e às universidades refletir sobre qual o nosso papel diante dessa crise civilizatória. É ter a coragem de, numa atitude de reflexividade - e que a ciência moderna tem se negado a fazer - refletir sobre si mesma”, ponderou Rigotto. E num exemplo concreto de como esta parceria pode transformar a ambos os campos, Agnaldo afirmou “Para nós é muito importante esse encontro de saberes de pesquisadores, agricultores. São, em momentos como o deste seminário que a gente sente o empoderamento, a nossa emancipação”

Voltar ao topo Voltar