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01/09/2016

Nova Revista de Manguinhos destaca tragédia da mineração

Texto: André Costa (CCS/Fiocruz) / Reportagem: Keila Maia (Fiocruz Minas)


O rompimento da barragem de Fundão, da Samarco/Vale/BHP Billiton, no município de Mariana (MG), é uma catástrofe de proporções tão colossais que pensar e escrever sobre o assunto é desafiador. Por décadas, acadêmicos, jornalistas, artistas e sobreviventes se dedicarão a tentar explicar o que aconteceu na Bacia do Rio Doce. Por melhor que se esforcem, serão sempre apenas parcialmente bem-sucedidos. Alguma dimensão do desastre - social, ambiental, judicial, econômica, subjetiva, metafísica - ainda permanecerá à espera de outras investigações, em uma trama que nunca chegará ao fim, mas que, por isso mesmo, é indispensável.

Algumas das primeiras peças deste quebra-cabeças foram montadas no aniversário de seis meses do desastre, no seminário O Desastre da Samarco: Balanço de Seis Meses de Impactos e Ações, realizado nos dias 5 e 6 de maio em Mariana. Organizado pela Fiocruz, em parceria com a Estratégia Internacional para a Redução de Desastres das Nações Unidas (UNISDR, na sigla em inglês), a Rede de Pesquisadores em Redução do Risco de Desastres no Brasil (RP-RRD-BR), as universidades federais de Minas Gerais (UFMG), de Ouro Preto (UFOP), de Juiz de Fora (UFJF) e a Universidade do Estado de Santa Catarina (Udes), o evento reuniu vítimas, pesquisadores, ativistas e representantes do poder público para compartilhar estudos, experiências e relatos sobre o rompimento e tudo o que envolve.

As discussões foram acaloradas e apresentaram perspectivas por vezes inconciliáveis. O desastre é um campo em disputa e os debates refletiram isso. É natural, assim, que uma das primeiras polêmicas tenha se dado sobre como definir o que aconteceu: um imprevisível acidente? Uma tragédia, como se fossem os deuses a estar por trás de tudo? Quem sabe um mais neutro desastre? Ou ainda um milagre de Deus, como disse, sob vaias, na mesa de abertura – a única do evento a que assistiu – o prefeito de Mariana, Duarte Gonçalves Júnior (PPS), sob a justificativa de que o rompimento ocorreu durante o dia, causando provavelmente menos fatalidades do que se tivesse sido à noite?

Paracatu de Baixo, Minas Gerais, seis meses após a tragédia (foto: Peter Ilicciev / Fiocruz)

 

“A forma como o Estado nomeia as coisas tem efeitos sobre o sofrimento social. Dar nome às coisas é uma ação de poder, que cria a realidade. Quando damos um nome, coisas que não existiam passam a existir”, disse na primeira mesa de debates a socióloga Andrea Zhouri, da UFMG. A pesquisadora explicou que as mineradoras e parte da imprensa se referiram ao ocorrido primeiro como acidente e, em seguida, como um conflito socioambiental. Segundo ela, estas denominações exprimem não só uma tentativa de naturalização do incidente e de tudo que o envolve, mas, mais do que isso, também impossibilitam o debate sobre questões como o modelo da mineração e a recorrência do rompimento de barragens, além de definir quem é vítima e quem não é.

Mais tarde, numa pergunta dirigida a uma mesa formada por advogados, o vice-presidente de Atenção e Promoção em Saúde da Fiocruz, Valcler Rangel, de certa maneira ofereceria um termo que sintetizaria a opinião da maioria dos presentes, com uma terminologia bem diferente da usada pelas mineradoras: “Para mim, o que houve foi um crime. Então, quero saber se posso me referir assim ao desastre, sem correr o risco de ter problemas com a Justiça”. Sim, responderiam unanimemente os profissionais do direito presentes, a destruição da Bacia do Rio Doce caracteriza um crime, e isso pode e deve ser dito. Uma questão que permanecia em aberto até ali, contudo, é em que medida ele foi premeditado.

Dos riscos e das estruturas

Desenvolvida sobretudo a partir da década de 1950, a perspectiva sociológica clássica sobre desastres trabalha com a noção de que desastres são eventos concentrados no tempo e no espaço. Eles são caracterizados como tendo um começo súbito, no qual uma subdivisão da sociedade passa por perigos severos; um meio, no qual a estrutura social é acometida; e, em última instância, um final, quando a vida social retorna mais ou menos ao normal, ou quando ocorre a recuperação.

Em contraposição a esta formulação, boa parte dos estudos contemporâneos sobre desastres os entende como manifestações previsíveis e esporádicas da própria organização da sociedade. Embora eventos como furacões, enchentes ou terremotos possam servir como gatilhos, os danos que se seguem têm origem em condições sociais e em processos que podem estar muito distantes dos eventos em si, como a pobreza, a desigualdade, a degradação ambiental e o fracasso de sistemas de proteção social e ambiental.

Segundo debate realizado no evento, o desastre da Samarco já foi precedido por uma série de outros desastres em menor escala (foto: Peter Ilicciev / Fiocruz)

 

No seminário sobre o desastre da Samarco, nem tanto se falou sobre os gatilhos que provocaram a eclosão da torrente de lama, como a hipótese de um ínfimo terremoto ter contribuído, ou até mesmo o indiscutível sobrecarregamento da barragem de rejeitos. Ao invés disso, para tentar explicar o que provocou o desastre, duas linhas principais se estabeleceram, em alguns pontos complementares e, em outros, incompatíveis.

A primeira destas perspectivas foi defendida com maior ênfase pelo coordenador da UNISDR no Brasil, David Stevens. Em sua apresentação, Stevens afirmou que os riscos são inerentes à vida; da hipótese de um meteoro arrasar o planeta a um acidente de bicicleta, jamais se poderá anular a possibilidade de uma grande desgraça. O fundamental, de acordo com o representante da ONU, é como lidar com esse risco: se da maneira correta, isto é, de forma a preveni-lo e minimizá-lo, ou então com negligência e irresponsabilidade. “O importante é que haja alguém monitorando e transparência”, disse Stevens.

Que esses atributos faltaram no desastre da Samarco, é algo indiscutível. Boa parte da população nem sequer sabia que, centenas de quilômetros acima, havia barragens no Rio Doce; não havia sirenes para alertar a população (os avisos vieram por telefone ou então por helicópteros que pousaram em algumas localidades); não havia pontos de encontro para a população; ainda mais grave, o sistema de automonitoramento da empresa era falho.

A outra explicação do acidente, entretanto, considera conservadora esta explicação de que o que produziu o acidente foi uma ausência de gestão sobre o risco, sem necessariamente discordar do postulado de que toda atividade humana implica em riscos, diversas apresentações ocuparam-se em desenvolver por que a devastação socioambiental é inerente à atividade mineradora na forma atualmente desenvolvida no país e por que uma calamidade semelhante era esperada – antes da barragem de Fundão, aos menos outros sete acidentes envolvendo barragens de rejeitos foram registrados nos últimos 15 anos apenas em Minas Gerais.

A apresentação que melhor explicou isso foi a do engenheiro e professor da Universidade Federal de Juiz de Fora Bruno Milanez. Utilizando dados entre 1965 e 2015, resultado de um relatório produzido por sete pesquisadores, Milanez mostrou a íntima correlação entre os ciclos da economia mineradora e do rompimento de barragens. Segundo o engenheiro, a elevação dos preços do minério de ferro leva a uma urgência de procedimentos de licenciamento, de execução e dos custos de capital e operacionais. Quando os preços caem, no entanto, há uma pressão por redução dos custos operacionais – e diminui, também, a segurança. Isso leva a uma quantidade de rompimentos superior em escala e quantidade depois das fases de vacas gordas. Em outras palavras, rompimentos de barragens não são inesperados, mas, tal como a economia minerária, cíclicos. “Um dos aprendizados que precisam ser tirados deste caso é que o rompimento de barragens é estrutural precisa ser tratado dessa forma”, observou.

Rio no subdistrito de Paracatu de Baixo (MG) seis meses após a tragédia (foto: Peter Ilicciev / Fiocruz)

 

Milanez esmiuçou também de que modos estes rompimentos estruturais se relacionam ao modelo de financiamento da empresa. Desde 2009, período de seu maior crescimento, 100% do lucro da Samarco foi entregue a acionistas. Todos os seus investimentos vieram a partir de dívidas, criando um risco financeiro muito elevado, com um endividamento maior do que seu próprio capital – o que incentivaria um aperto os cintos para poder fechar as contas. “Como ela reduz os custos? Onde ela mexeu para diminuir custos? Exatamente quando essa redução começa, vemos um aumento da taxa de acidentes de trabalho. Uma hipótese é que [ao diminuir os custos], a empresa aumenta o lucro, diminui o monitoramento e diminui a segurança”, disse Milanez.

Em uma mesa no segundo dia do evento, o pesquisador do Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) Carlos Machado de Freitas, um dos organizadores do encontro, traria reflexões que de certa maneira fariam uma conexão entre as duas perspectivas antagônicas, em sua palestra sobre as características inerentes a desastres. Nenhum desastre, afirmou Machado de Freitas, deve-se a uma causa única; por trás de cada um deles há sempre um acúmulo de pequenas falhas, transformadas em normalidade ao longo do tempo. De acordo com o pesquisador, os “desastres constituem fraturas expostas dos sistemas tecnológicos, permitindo vislumbrar um universo pouco acessível em situações habituais, onde anormalidades, acidentes e desastre de menor impacto são tornados invisíveis e transformados em normalidades”.

Segundo o pesquisador, o desastre da Samarco já foi precedido por uma série de outros desastres em menor escala, assim como por acidentes de trabalho e danos ambientais anteriores. Segundo ele, o risco pode ser considerado resultado de má governança, mas esta má governança não se limita ao rompimento da barragem, e sim é estrutural. E as más notícias, segundo ele, é que “o desastre não só atualiza o cenário de risco anterior, como traz novos riscos. Se tínhamos risco de doenças antes, o desastre traz novos riscos de doenças e agravos”.

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