02/01/2017
Um estudo realizado por pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) com 89 crianças menores de quatro anos frequentadoras de uma creche em uma comunidade carioca identificou que 44 delas – quase 50% do total – estavam infectadas pelo parasito intestinal Giardia lamblia. Este protozoário pode prejudicar o desenvolvimento das crianças e levar à desnutrição infantil, nos casos mais graves. Os cientistas do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisas Médicas do IOC/Fiocruz, que conduziram a investigação, realizaram a caracterização molecular dos patógenos. Eles verificaram que 29 crianças apresentaram infecção por parasitos giárdia do genótipo A – o mais comum em casos humanos no Rio de Janeiro – e 15 revelaram presença do genótipo E – que foi considerado por muito tempo como causador de infecções unicamente em animais de produção, como cavalos, bois e porcos. Publicado na revista científica The Journal of Infectious Diseases, o estudo teve colaboração da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e foi apoiado pelo programa Brasil sem Miséria.
De acordo com os especialistas, devido à falta de saneamento básico na comunidade, uma alta taxa da parasitose intestinal já era esperada. Porém, esta é a primeira vez que a infecção humana pelo genótipo E é identificada em um número significativo de pacientes. “Com poucas ocorrências relatadas na literatura científica, que já havia registrado casos isolados, ainda existia dúvida sobre o potencial de infecção do genótipo E em humanos. O percentual expressivo de casos nesse trabalho foi uma surpresa e contribui para confirmar essa hipótese”, afirma Maria Fantinatti, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Medicina Tropical do IOC/Fiocruz e primeira autora do artigo. Coordenadora do trabalho, a pesquisadora Alda Maria Da-Cruz, chefe do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisas Médicas do IOC/Fiocruz, diz que o achado levanta diversas questões, especialmente relativas ao ciclo de transmissão da giárdia, já que outros animais, além de gatos e cães, podem atuar como fontes de contaminação, aumentando a possibilidade de infecção. “É possível que o genótipo E esteja se disseminando em humanos a partir do contato com as fezes de outras pessoas infectadas. No entanto, também é preciso considerar a possibilidade de que as fezes de animais tenham um papel importante na disseminação da doença”, pondera a pesquisadora.
Importância do saneamento
Amostras da água que abastece a creche foram analisadas na pesquisa, e 35 dos 36 educadores também passaram por exames de fezes. Considerando que não foi detectada contaminação e que todos os funcionários apresentaram resultado negativo para enteroparasitos, os pesquisadores avaliam que as crianças possam ter adquirido a giardíase na comunidade onde moram. No local, a coleta de esgoto e a água tratada não chegam a todas as casas. Nessas condições, os cistos de giárdia, que são liberados nas fezes dos pacientes e de animais infectados, podem contaminar as fontes de abastecimento de água, facilitando a disseminação do protozoário. Além de permanecer viáveis no ambiente por meses, os cistos do parasito são resistentes ao cloro. “A infecção acontece quando as pessoas ingerem os cistos da giárdia. Uma vez que o tratamento da água se torna difícil em determinadas localidades e o uso de cloro não é suficiente para eliminar o parasito, o consumo de água contaminada constitui uma importante via de transmissão. O contato com superfícies contaminadas e o hábito comum entre as crianças em idade pré-escolar de colocar as mãos e objetos na boca também podem favorecer a propagação do agravo”, explica Fantinatti. “Geralmente, as crianças de menor idade são as mais afetadas, pois sua imunidade ainda se encontra pouco estimulada, impedindo o controle da infecção”, acrescenta.
Em muitos casos, a infecção é assintomática. Quando ocorrem sintomas, as manifestações mais frequentes são diarreia e dor abdominal, comuns em diversas enfermidades. Já nos casos de infecções graves, o quadro pode evoluir para desnutrição infantil, com impacto direto no desenvolvimento das crianças. O diagnóstico é feito através do exame parasitológico de fezes, com a detecção dos cistos de giárdia nas amostras. Segundo Alda, esse é um dos desafios no enfrentamento do agravo. Se o exame não for solicitado, os pacientes assintomáticos podem ficar sem tratamento. Outra questão é a conscientização sobre o uso indiscriminado de vermífugos, que não possuem ação contra giárdia. “Existe a impressão de que as parasitoses intestinais são uma questão já resolvida no Brasil ou que não afetam os centros urbanos. Mas elas permanecem como um importante problema de saúde pública”, ressalta a médica, especialista em doenças infecciosas e parasitárias, lembrando que, além do tratamento, o saneamento é fundamental para prevenir a reinfecção.
Os genótipos
A classificação dos diferentes genótipos de giárdia é feita a partir da análise de regiões específicas do DNA do parasito. Entre as oito variedades, apenas A e B são tradicionalmente conhecidas por infectar seres humanos e alguns animais, incluindo cães e gatos. Os demais genótipos são encontrados unicamente em determinados hospedeiros: C e D em cães domésticos e selvagens, F em gatos, G em ratos e camundongos, e H em focas. Com relação ao genótipo E, os achados recentes em diferentes espécies – incluindo coelhos e primatas, além de seres humanos – apontam para a hipótese de que os avanços nas técnicas de genotipagem estejam permitindo a identificação de um fenômeno que ocorria despercebidamente no passado. Por outro lado, segundo as especialistas, é preciso também considerar a possibilidade de adaptação dessa variedade de giárdia. “Uma vez que o contato com fezes de animais como cavalos, bois e porcos ocorre mais frequentemente, é possível que os parasitos do genótipo E tenham se adaptado, tornando-se capazes de infectar os pacientes e outros hospedeiros”, comenta Alda.
Próximos passos
Os cientistas planejam avaliar quais as vias mais comuns de transmissão e a disseminação de giárdia do genótipo E. As análises devem incluir amostras de fezes de animais, solo, água e alimentos produzidos e consumidos na comunidade estudada. O trabalho também deve ser expandido para outros bairros do Rio.