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31/01/2011

Pesquisadora reflete sobre as questões da saúde no novo governo brasileiro

Tania Araújo-Jorge


Estamos iniciando o ciclo Dilma Rousseff de expectativas e esperanças. Após oito anos do governo melhor avaliado da História, a nova presidenta se compromete a dar continuidade às políticas da gestão Lula que fizeram o Brasil resgatar parte de sua dívida social, tirando da miséria e da pobreza um contingente de pessoas do tamanho da população da França. Completar esse trabalho e erradicar a miséria no Brasil é a meta número um proposta pela primeira mulher a assumir a presidência. Mas isso só será possível se o novo governo alinhar esse objetivo socioeconômico a um outro objetivo macropolítico situado no campo da saúde, que não foi mencionado na campanha eleitoral e que não está explicitado nas metas do Mais Saúde, o PAC da Saúde: controlar as doenças promotoras da pobreza. Do que falamos?

 

 Obra <EM>Favela</EM>, de Cândido Portinari
Obra Favela, de Cândido Portinari

Falamos da visão atual sobre o passivo da saúde pública do Brasil, herança do século 20 que teima em desafiar as políticas de saúde do século 21 e se coloca como obstáculo ainda não transposto que retarda o ingresso do país no mundo desenvolvido contemporâneo. De nada adiantará atingirmos a meta de ser a quinta economia do mundo se tivermos que continuar a falar dos 2 milhões de pessoas com esquistossomose no Brasil, dos 93 milhões de pessoas com outras verminoses, dos mais de 300 mil novos casos de malária por ano e dos índices crescentes das leishmanioses (mais de 500 mil pessoas!), em franca expansão em capitais como Fortaleza, Campo Grande e Teresina.

De nada adiantará nos alegrarmos com as vitórias das campanhas de vacinação em massa no Brasil, que controlaram a varíola e a poliomielite e que estão na iminência de controlar o sarampo e a rubéola, se ao lado dessas conquistas permanecem os quatro milhões de portadores de doença de Chagas ou os mais de 75 mil portadores de hanseníase, essa doença bíblica que, mesmo com a aplicação de tratamento nos casos detectados, conta mais de 37 mil novos casos por ano no Brasil. Como poderemos comemorar nossos avanços na cardiologia de alta qualidade ou nas pesquisas em células tronco se os números de casos de tuberculose e de Aids mostram uma redução lenta no país, ao mesmo tempo em que aumentam as ocorrências nas regiões Norte e Nordeste? Isso sem falar da dengue e apenas citando que a sífilis dobrou no Brasil nos últimos cinco anos.

No total, mais de 100 milhões de brasileiros ainda convivem com essas doenças endêmicas, antes conhecidas como “negligenciadas”, e cada vez mais assumidas como “doenças promotoras da pobreza”. Sim, essas são doenças da pobreza, segregantes e segregadoras, com distribuição desigual entre os brasileiros de diferentes classes sociais e entre as regiões do país.

Doenças que antes eram conhecidas como duplamente “negligenciadas”: negligenciadas pelos governos, que destinam parcos recursos para a investigação de suas causas e de novos métodos de tratamento e controle, e negligenciadas pela indústria farmacêutica dos países ricos, a “big pharma”, que não se interessa em desenvolver produtos para mercados pobres que não poderiam pagar por eles. Doenças cuja relação com a pobreza foi ficando cada vez mais clara, explicitada pela Organização Mundial da Saúde como “doenças infecciosas da pobreza”.

Mas coube aos economistas seu esclarecimento definitivo: elas não são apenas consequência da pobreza, como a desnutrição, elas são requisitos da pobreza, como bem nos ensina o professor Carlos Morel. São doenças que promovem a pobreza, que retiram dos brasileiros seu poder, sua força e seu tempo de trabalho, lhes confere incapacidades físicas e de aprendizado, lhes furtam chances de desenvolvimento humano, marcando gol contra no time das políticas públicas contra a miséria.

Controlar as doenças promotoras da pobreza é requisito para o Brasil erradicar a miséria, em busca de maior equidade e justiça social. É nosso papel de cientistas militantes dessa causa alertar a próxima presidente sobre essa tarefa definitiva para o país.

Tania Araújo-Jorge é diretora do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz). Médica, pesquisadora e colaboradora do Decit-Ministério da Saúde para a atualização do tema “doenças transmissíveis” da Agenda Nacional de Prioridades de Pesquisa em Saúde. Este artigo foi originalmente publicado no jornal Correio Braziliense.

Publicado em 28/1/2011.

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