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11/02/2009

Reforma Psiquiátrica, 30 anos: momento pede novas estratégias

Paulo Amarante*


O ano de 2008 marcou a consolidação do processo brasileiro de reforma psiquiátrica, consagrando seus 30 anos de existência em dois grandes eventos que reuniram milhares de profissionais, usuários, familiares e segmentos diversos da sociedade civil. Considerado o início do processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil, 1978 viu surgir o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), protagonista principal das primeiras denúncias da violência psiquiátrica e da organização política na área. Mas os ataques à Reforma Psiquiátrica por parte de setores conservadores e empresariais da loucura e o novo cenário político de participação social propiciado pela Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme) exigem a organização, ainda neste ano de 2009, da 4ª Conferência Nacional de Saúde Mental.

 

 Teatro-Procissão na Praia de Copacabana, comandado por blocos carnavalescos, durante o 2º Fórum Internacional de Saúde Coletiva, Saúde Mental e Direitos Humanos (Foto: Leandra Brasil da Cruz) 
Teatro-Procissão na Praia de Copacabana, comandado por blocos carnavalescos, durante o 2º Fórum Internacional de Saúde Coletiva, Saúde Mental e Direitos Humanos (Foto: Leandra Brasil da Cruz) 

O primeiro evento de 2008 ocorreu em maio, mês em que tradicionalmente se comemora a Luta Antimanicomial no Brasil, em decorrência da aprovação da Lei 180, a da Reforma Psiquiátrica italiana, que se tornou marco internacional no processo de superação das práticas arcaicas e violentas no lidar com o sofrimento mental. O 2º Fórum Internacional de Saúde Coletiva, Saúde Mental e Direitos Humanos teve lugar no Rio de Janeiro, em maio, organizado pelos movimentos Nacional da Luta Antimanicomial e Nacional de Direitos Humanos e a Universidade Popular das Mães da Praça de Maio, da Argentina. O 1º Fórum, dois anos antes, em Buenos Aires, propiciara a interlocução política da reforma psiquiátrica e dos movimentos sociais envolvidos na defesa da democracia, dos direitos humanos, da cidadania e da diversidade cultural, étnica, política e social.

Os mais de 3 mil participantes de várias nacionalidades, origens sociais e políticas se emocionaram e se envolveram com os debates mais variados, do trabalho escravo à participação política de usuários na construção de novas práticas assistenciais e culturais em saúde mental. Neste 2º Fórum, uma inovação fundamental: a programação cultural, organizada pelo Projeto Loucos pela Diversidade (Ministério da Cultura e Ensp/Fiocruz). Não se tratava de atividades de lazer ou entretenimento, mas de nova forma de pensar e fazer as políticas de saúde mental e a participação social principalmente dos usuários, de pensar e fazer a intervenção cultural, transformando o imaginário social sobre a loucura.

Corredores e salas da Uerj, onde se realizou o fórum, foram ambientados segundo os temas dos debates (sexualidades, etnias, instituições), sob a coordenação do Grupo de Teatro do Oprimido; no salão de acesso ao auditório principal, uma exposição de cartazes históricos da Reforma Psiquiátrica, sob a curadoria do artista Gianni Puzzo; mostra de vídeos e apresentações de teatro, entre elas a de internos do Hospital de Tratamento e Custódia, dos grupos Os Nômades e Pirei na Cenna. Show na praça da Lapa, centro cultural do Rio, teve participação do Coral Cênico Cidadãos Cantantes, de São Paulo, do grupo de hip-hop Black Confusion, de Porto Alegre, mais Harmonia Enlouquece, Sistema Nervoso Alterado e Camisa de Força, também do Rio — usuários de serviços de saúde mental trabalhando temas que faziam a platéia refletir sobre a dor da discriminação e da violência, as expectativas de quem vive ou viveu a experiência do sofrimento mental.

Teatro procissão

Para encerrar, uma das mais fortes e incisivas intervenções culturais já pensadas no campo da reforma psiquiátrica: um Teatro-Procissão na Praia de Copacabana, comandado por blocos carnavalescos — Tá Pirando, Pirado, Pirou, Loucura Suburbana e Maluco Sonhador — ao som da bateria da Escola de Samba Caprichosos de Pilares.

Mas faltava, nestes 30 anos, uma associação de saúde mental nacional que agregasse profissionais, movimentos e projetos deste vasto campo, tão plural e transdisciplinar. Esta ausência, observada nas reuniões do Grupo de Trabalho em Saúde Mental da Abrasco, tomou corpo e se transformou em realidade em 2008 no 1º Congresso Brasileiro de Saúde Mental, promovido de 3 a 5 de dezembro pela Abrasme em Florianópolis.

A chuva e a tragédia que abateram Santa Catarina e comoveram o Brasil naqueles dias impuseram a dúvida: manter ou não o congresso? Por um lado, o cancelamento poria em risco um projeto político crucial nos 30 anos da reforma psiquiátrica brasileira, considerando-se, principalmente, os duros ataques à saúde mental pública, eficiente e inclusiva. Por outro lado, por que não aproveitar a situação para colaborar no enfrentamento da calamidade? Assim, a decisão pela manutenção da data prevista foi acompanhada de forte campanha de solidariedade: os participantes contribuíram com doações financeiras e materiais em postos abertos no espaço da UFSC, onde ocorreu o evento; dezenas de estudantes que trabalhariam como voluntários no congresso cuidaram das vítimas das enchentes.

A grande quantidade de trabalhos inscritos, mais de 1.200, as várias mesas propostas, as atividades, as reuniões de associações e grupos de pesquisa confirmaram a importância e a oportunidade do evento. Os 2 mil participantes, conferencistas e ouvintes, muitos provenientes de outros países, acorreram às discussões de temas de natureza tanto acadêmica quanto política e social. Entre os muitos lançamentos de publicações estava o primeiro número dos Cadernos Brasileiros de Saúde Mental, da Abrasme, e um número especial da revista Saúde em Debate, do Cebes, dedicado ao tema.

O projeto Loucos pela Diversidade cuidou da parte cultural, na mesma linha do Fórum: exposição de cartazes, show das bandas Black Confusion e Harmonia Enlouquece, exposição de quadros de Xico Santeiro, ex-funcionário do Hospital Psiquiátrico de Barbacena, abordava o tema da loucura e das instituições psiquiátricas.

O Congresso cumpriu seus propósitos. Reuniu profissionais de saúde mental e de outras áreas das políticas públicas; usuários dos serviços de saúde mental e suas famílias vieram de todo o país. Debateu a assistência às pessoas em sofrimento mental, mas não se restringiu à assistência: discutiu aspectos sociais, trabalho, educação, direitos civis, sociais e políticos, cultura e lazer. E, mais importante que tudo, permitiu a congregação de um novo contexto político em torno da Abrasme — associação não apenas de técnicos e profissionais, mas de todos os segmentos envolvidos no campo da saúde mental, novo ator social na formulação e na implantação da reforma psiquiátrica como prática democrática de se tratar e lidar socialmente com a diferença, a diversidade e a loucura.

Expressões simbólicas deste novo protagonismo foram as moções de repúdio à concessão de menção honrosa do Prêmio Vladimir Herzog a uma reportagem equivocada e tendenciosa defendendo os manicômios [revistas Radis 67 e 76] e de reivindicação da 4ª Conferência Nacional de Saúde Mental para 2009. Mais do que nunca, o país precisa se reunir para discutir e construir novas estratégias para o avanço da Reforma psiquiátrica. Assim, 4ª Conferência já! 

* Professor e pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental (Laps/Ensp), coordenador dos cursos de especialização em saúde mental e atenção psicossocial e de educação a distância de saúde mental, políticas e instituições; professor honoris causa da Universidad Popular Madres de Plaza de Mayo; editor da revista Saúde em Debate, do Cebes.

Publicado em 11/2/2009 (este artigo foi originalmente publicado na revista Radis número 78, em fevereiro de 2009. Para acessar o conteúdo da revista, clique aqui).

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