Início do conteúdo

10/09/2013

Doenças Negligenciadas

Doença de Chagas: Fiocruz na vanguarda do estudo da enfermidade

Ricardo Valverde


Descrita em 1909 pelo cientista Carlos Chagas – na época pesquisador e depois diretor do então Instituto Oswaldo Cruz, que daria origem à atual Fiocruz – a doença de Chagas também é conhecida como tripanossomíase por Trypanosoma cruzi ou tripanossomíase americana (terminologia adotada pela Nomeclatura Internacional de Doenças, a NID). As tripanossomíases são enfermidades causadas por protozoários flagelados do gênero Trypanosoma, que parasitam o sangue e os tecidos de vertebrados.

O Trypanosoma geralmente é transmitido de um hospedeiro a outro por insetos – no caso humano, o principal vetor é um percevejo popularmente conhecido como barbeiro ou chupão (insetos das espécies Triatoma infestansRhodnius prolixus e Panstrongylus megistus). Ao fazer a descrição do ciclo completo da enfermidade, Carlos Chagas se tornou o autor de um feito extraordinário e inscreveu seu nome na história da ciência e da medicina.

A doença de Chagas presenta uma fase aguda que pode ser identificada ou não (doença de Chagas aguda, DCA) e tendência à evolução para as formas crônicas, caso não seja tratada precocemente com medicamento específico. Superada a fase aguda, aproximadamente de 60% a 70% dos infectados evoluirão para uma forma indeterminada, sem nenhuma manifestação clínica da doença de Chagas. O restante, entre 30% a 40%, desenvolverá formas clínicas crônicas, divididas em três tipos de acordo com as complicações apresentadas: cardíaca, digestiva ou mista (com complicações cardíacas e digestivas).

Os vetores da doença de Chagas são os triatomíneos (família Reduviidae), insetos hematófagos popularmente conhecidos como barbeiros ou bicudos. Qualquer mamífero pode albergar o parasito, enquanto aves e répteis são refratários à infecção. Os principais reservatórios no ciclo silvestre são gambás, tatus, cães, gatos, ratos etc. No ciclo doméstico, em função da proximidade das habitações do homem com o ambiente silvestre, os reservatórios são seres humanos e mamíferos domésticos ou sinantrópicos como cães, gatos, ratos e porcos.

Em função de ações de controle de vetores a partir da década de 1970, em 2006 o Brasil recebeu Certificação Internacional pela Interrupção da Transmissão de Doença de Chagas pelo Triatoma infestans, espécie importada e responsável pela maior parte da transmissão vetorial no passado. Estima-se que existam aproximadamente 12 milhões de portadores da doença crônica nas Américas, cerca de 2 a 3 milhões no Brasil.

Desde a descrição do ciclo da doença que a Fiocruz se converteu em uma das principais instituições do mundo no estudo da doença de Chagas. Recentemente, um desses trabalhos obteve destaque na 49ª edição do Congresso da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, realizada em Campo Grande, ao apresentar novos aspectos da coinfecção da doença de Chagas com o HIV. O estudo foi desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa Clínica Evandro Chagas (Ipec/Fiocruz). Segundo a autora da pesquisa, o xenodiagnóstico e o diagnóstico molecular por meio da PCR, ambos quantitativos, podem ser importantes ferramentas para avaliar precocemente a reativação em sua fase assintomática, bem como utilizá-la no monitoramento clínico da coinfecção.

Outro artigo que merece menção é o estudo Estratégias de prevenção do acidente vascular encefálico cardioembólico na doença de Chagas, da cardiologista Andréa Silvestre de Sousa, do Instituto de Pesquisa Clínica Evandro Chagas (Ipec) da Fiocruz, obteve o primeiro lugar na categoria Cardiologia Geral, no 4º Prêmio ABC de Publicação Científica, concedido pela revista Arquivos Brasileiros de Cardiologia. A pesquisa, inédita, determinou a incidência de acidente vascular encefálico isquêmico (AVEi) em pacientes com cardiopatia chagásica. Em pleno século 21, a velha enfermidade continua a oferecer novos desafios. Esses desafios, como aponta um antigo pesquisador, ainda exigem muita atenção por parte dos cientistas.

Segundo dados da organização Drugs For Neglected Diseases iniciative (DNDi), a doença de Chagas sozinha é responsável por cerca de 12 mil mortes por ano na região da América Latina. E representa um custo global de US$ 7,2 bilhões por ano. O Brasil está no topo do ranking em perdas de produtividade com um custo de US$ 129 milhões para a saúde pública por ano.

Toda a produção da Fiocruz – e também de outras instituições – sobre doença de Chagas pode ser acessada em um portal que reúne um acervo de textos científicos elaborados especificamente para o veículo, o que o torna um inédito banco de dados online sobre diferentes aspectos relacionados à temática da doença de Chagas. O portal é uma iniciativa do Programa Integrado de Doença de Chagas da Fundação Oswaldo Cruz (PIDC). O programa existe desde 2000 e integra 34 laboratórios da Fiocruz, além de contar com a colaboração de outras instituições de ensino e pesquisa do Brasil e exterior.

A parceria científica com instituições de outros países, uma tradição da Fiocruz, também ocorre em relação à doença de Chagas. Até 2016, mais de 40 pesquisadores de variadas áreas do conhecimento, espalhados por dez instituições do Brasil, da França e do Canadá, se articularão em torno de uma iniciativa multidisciplinar do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) que busca contribuir com a melhoria da qualidade de vida dos portadores da doença de Chagas. Esse intercâmbio contribui para que a Fundação tenha sido incluída, segundo o Instituto de Medicina Tropical de São Paulo, por meio de um grupo coordenado por pesquisadores da Espanha, do Peru e da Coreia do Sul, entre os grupos mais produtivos em doenças de Chagas no mundo. Dos 80 citados, 46 são brasileiros, sendo 11 da Fiocruz.

Os estudos continuam focando novos ângulos, como o que forneceu informações sobre habitat de um dos vetores da doença de Chagas. A pesquisa determinou o habitat natural do Panstrongylus megistus, triatomíneo (barbeiro) considerado um dos principais vetores da doença de Chagas devido à sua alta suscetibilidade ao Trypanosoma cruzi. Nesse estudo, pesquisadores da Fiocruz Minas registraram a primeira descoberta de colônias do P. megistus após quase 70 anos de pesquisas em Bambuí (MG).
 
A Fiocruz Pernambuco também estuda a doença de Chagas. Pesquisadores da unidade identificaram marcadores imunológicos que podem ser usados para predizer que forma clínica sintomática o paciente tem tendência a desenvolver. Segundo os especialistas, quanto mais cedo isso acontecer melhor para o paciente, pois poderá ser acompanhado e receber o tratamento adequado desde o início dos sintomas. Toda essa investigação e os estudos que continuam a ser desenvolvidos levam alguns pesquisadores a acreditar no controle mundial da enfermidade nos próximos anos.

Voltar ao topo Voltar