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01/11/2013

Estudo da COC analisa representação da mulher em revistas do início do século 20

Glauber Gonçalves


A mulher modelo: aquela que consegue equilibrar vida profissional, casamento e filhos com destreza e, de quebra, ainda reserva tempo para praticar esportes. Essa descrição bem poderia se referir ao arquétipo da mulher moderna construído nas páginas de dezenas de revistas cujas capas trazem modelos exibindo seus corpos e rostos perfeitos, graças, em parte, a um cuidadoso retoque via Photoshop. A receita acima, porém, é antiga – já era prescrita muito antes da invenção dos programas de edição de imagens. O trecho se refere ao modo como uma publicação de grande circulação no Rio de Janeiro retratava a mulher ideal na primeira metade do século passado.

A constatação é feita com base em dissertação de mestrado defendida por Priscila Cupello no Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). No trabalho, intitulado A mulher (a)normal:  representações do feminino em periódicos científicos e revistas leigas de grande circulação na cidade do Rio de Janeiro (1925-1933), ela contrapôs a representação da mulher considerada “normal” em publicações médicas com o retrato feminino veiculado em revistas voltadas ao público em geral nas primeiras décadas do século 20.

Naquele período, representantes de diversos campos do conhecimento se empenhavam na elaboração de um projeto para fazer do Brasil um país moderno. Os eugenistas e os higienistas não eram uma exceção. Para sua pesquisa, Priscila analisou revistas científicas que revelavam a visão de futuro que esse grupo tinha para a nação: o Boletim de Eugenia (1929-1933) e os Arquivos Brasileiros de Higiene Mental (1925-1947), esse último publicado pela Liga Brasileira de Higiene Mental.

Fundada em 1923, a entidade tinha inicialmente o objetivo de melhorar a assistência aos doentes mentais por meio da renovação dos quadros profissionais dos hospícios. Com o passar do tempo, passou a promover a prevenção das doenças psiquiátricas. Ao tomar para a si um papel ativo no projeto de modernização do País, os higienistas mentais defendiam um processo de normalização da população, através da criação de rotinas de hábitos saudáveis e específicos para os homens e as mulheres - essas concebidas como amorosas, frágeis, bondosas e capazes de apagar a si mesmas em prol dos desejos dos filhos e do marido. Os doutores iam além: queriam interferir nas uniões matrimoniais, por meio da legalização do exame pré-nupcial e da esterilização dos “degenerados” para garantir a saúde e a sanidade das gerações futuras.

A análise de Priscila mostra que as revistas de grande circulação não se mostraram muito permeáveis a essas ideias. Entre os dois títulos analisados, Revista Feminina e A Maça, a primeira foi a que mais se apropriou do discurso médico. “Há nessa revista uma valorização muito grande das crianças, que vão ser os adultos de amanhã. Então as mães precisam dar-lhes uma boa educação dentro de casa”, explica Priscila. O psiquiatra e eugenista Júlio Porto-Carrero, que frequentemente publicava artigos sobre essa temática nos Arquivos Brasileiros, era taxativo sobre o papel da mulher: defendia que a “esposa-mãe” era o “tipo completo de mulher normal”.

Apesar de sua proximidade com o discurso médico em alguns temas, a Revista Feminina defendia bandeiras próprias – algumas, inclusive, rechaçadas pela comunidade científica. Voltada para as famílias da elite daquela época, a publicação se dizia moderna e apoiava a emancipação feminina, Porém, com limites. Deixar a casa para trabalhar era visto como algo positivo. No entanto, a lista de atividades que uma mulher poderia desempenhar era limitada àquelas vistas como uma expansão de suas tarefas no lar, entre as quais professora e enfermeira.

A outra revista leiga analisada por Priscila tinha um perfil diferente. O tom mais escrachado de A Maçã era evidente já nas capas. Em uma das edições, uma ilustração mostrava uma jovem mulher sendo carregada em uma espécie de riquixá por um senhor bem vestido, abaixo da qual se lia: O marido ideal. Fundada pelo jornalista Humberto de Campos, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), a publicação falava com um público jovem de classe média. A revista criticava o modo de vida burguês e capitalista daquele momento, condenando a valorização excessiva do dinheiro. “As mulheres eram vistas como vaidosas, ambiciosas, que só se casavam por interesse. O homem era retratado como o velho burguês, o capitalista”, afirma a pesquisadora.

Diversas das crônicas traziam uma mulher que contrastava fortemente com o ideal prescrito por higienistas e eugenistas. Em uma delas, a personagem visita um banqueiro para pedir um emprego para o marido, que estava desempregado. A crônica termina com o autor afirmando que, dias depois, quem passasse na porta da residência do capitalista podia ouvir os barulhos suaves de beijos que vinham lá de dentro. Defensores da monogamia, eugenistas e higienistas sustentavam que o divórcio era capaz de suscitar “degeneração nervosa e mental”, como se lê em um dos textos dos Arquivos Brasileiros.

Outros textos e até anúncios de A Maçã deixam evidente a presença da dupla moral sexual na revista. Em uma das edições, uma peça publicitária oferecia um remédio para os homens que adquiriram doenças venéreas antes do matrimônio. O objetivo estava claro: não contaminar as suas noivas, que, conforme se esperava, deveriam se casar virgens. “Sanguinol: eis a razão por que milhares de senhoras sofrem [de doenças venéreas] sem saber a que atribuir a causa”, dizia o anúncio.

Priscila conclui que o campo médico não conseguiu impor à sociedade em geral a sua concepção de “mulher normal”. No universo da psiquiatria, as mulheres eram catalogadas como alienadas quando apresentavam comportamentos considerados atípicos para as normas morais da sociedade carioca de então. No entanto, a leitura das revistas generalistas mostra que, no espaço social mais amplo, esse campo do conhecimento não foi soberano e teve de compartilhar com outros saberes, inclusive políticos, populares e religiosos, a autoridade sobre o que era a normalidade feminina.

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