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29/08/2022

Estudo revela que garimpo ilegal contamina peixes de rios de RR

Informe Ensp


Assado, frito, na brasa ou cozido. Não importa o modo de preparo, o peixe tem espaço garantido na mesa da população de Roraima. No entanto, o hábito saudável e tradicional está ameaçado pelo garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami. Segundo estudo de pesquisadores da Fiocruz, do Instituto Socioambiental (ISA), do Instituto Evandro Chagas e da Universidade Federal de Roraima (UFRR), os pescados coletados em três de quatro pontos na Bacia do Rio Branco apresentaram concentrações de mercúrio maiores ou iguais ao limite estabelecido pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e a Organização Mundial da Saúde (OMS). 

De acordo com o estudo, para algumas espécies de peixes carnívoros, como o filhote, a contaminação já é tão alta que praticamente não existe mais nível seguro para o seu consumo, independente da quantidade ingerida. O consumo continua sendo possível para espécies como o matrinxã, aracu, jaraqui, pacu, jandiá e outras. Entretanto, para crianças e mulheres em idade fértil, estas espécies devem ser consumidas com moderação, para evitar riscos à saúde.

A pesquisa aponta que barba chata, coroataí, filhote, piracatinga e pirandirá são peixes carnívoros com risco muito alto, que devem ser consumidos no máximo em uma porção de 50 gramas, uma vez ao mês. Dourada, mandubé, liro, pescada, piranha preta e tucunaré são peixes carnívoros com alto risco, não devendo o consumo exceder 200 gramas por semana. Já curimatã, jaraqui, matrinxã, pacú seriam peixes não-carnívoros com médio e baixo risco, que não apresentam restrições para o consumo e podem ser consumidos em porções de até 300 gramas por dia. Para as mulheres grávidas, é indicado evitar, durante toda a gravidez, o consumo de peixes carnívoros (barba chata, coroataí, filhote, piracatinga, pirandirá).

Baseada em metodologia proposta pela OMS, a análise de avaliação de risco à saúde coletou amostras de pescado entre 27 de fevereiro e 6 de março de 2021 e revelou índices altos de contaminação em trecho do Rio Branco na cidade de Boa Vista (25,5%), Baixo Rio Branco (45%), Rio Mucajaí (53%) e Rio Uraricoera (57%). “As altas taxas de contaminação observadas, provavelmente, são decorrentes dos inúmeros garimpos ilegais de ouro instalados nas calhas dos rios Mucajaí e Uraricoera”, pontuam os pesquisadores. 

No Uraricoera, ponto mais próximo à Terra Indígena Yanomami, a cada 10 peixes coletados, seis apresentaram níveis de mercúrio acima dos limites estipulados pela OMS. No Rio Branco, na altura da capital (Boa Vista), a cada 10 peixes coletados, aproximadamente dois não eram seguros para consumo. Sendo assim, mesmo distantes da Terra Indígena Yanomami, e apesar de em proporção menor, os habitantes de Boa Vista não estão livres dos impactos do mercúrio utilizado no garimpo ilegal.

Metodologia

Conforme explica a nota técnica, com os dados do nível de contaminação nos peixes, foi realizado então um cálculo do risco do consumo entre diferentes grupos populacionais de Roraima, que consistiu em cinco etapas. A primeira estabeleceu a divisão em estratos populacionais – urbano e não urbano – e dos seus respectivos pesos médios, determinando os níveis de mercúrio no pescado e estimando a quantidade ingerida diariamente por cada população em estudo. Foram estimados os riscos à saúde decorrentes do consumo de pescado contaminado por mercúrio para mulheres em idade fértil (10 a 49 anos), homens adultos (maiores de 18 anos), crianças de 5 a 12 anos e de 2 a 4 anos.

A segunda etapa considerou a estimativa da quantidade média de mercúrio ingerida diariamente pelos estratos investigados, a partir da quantidade de pescado consumido. No terceiro passo, se calculou a razão de risco, estimada a partir da divisão da dose de ingestão diária de mercúrio em cada grupo, analisada na etapa anterior, pela dose segura estabelecida pelos órgãos da FAO/OMS. 

Em seguida, foram construídos cenários hipotéticos de exposição para avaliar o impacto de diferentes padrões de consumo na saúde dos grupos. Finalmente, se estabeleceu um conjunto de orientações buscando identificar um padrão de Consumo Máximo Seguro de Pescado (CMS), a partir das análises realizadas, a fim de evitar problemas decorrentes da contaminação por mercúrio.

No cálculo da razão de risco, foram definidos três padrões de consumo de pescado para a análise de risco à saúde: baixo, com até 50 gramas de pescado por dia, moderado, com até 100 gramas de pescado por dia e alto, com 200 gramas de pescado por dia. 
A conclusão é a de que não há quantidades seguras de consumo de peixe para quase todos os grupos analisados – exceto homens com consumo inferior a 50 gramas diárias. 

Os pesquisadores ressaltaram ainda: “comparando as razões de risco estimadas para as populações urbana e não-urbana observamos que ambas estão igualmente sob risco de adoecer, devido à ingestão de peixes contaminados por metilmercúrio”. 

Impactos do mercúrio na saúde

Apesar de o pescado ser uma proteína de alta qualidade nutricional, indicada em dietas com baixo colesterol e mais saudáveis, a contaminação do pescado de Roraima por mercúrio representa um sinal de alerta, defendem os pesquisadores.

Segundo o estudo, 45% do mercúrio usado em garimpos ilegais para extração de ouro é despejado em rios e igarapés da Amazônia, sem qualquer tratamento ou cuidado. O mercúrio liberado de forma indiscriminada no meio ambiente pode permanecer por até cem anos em diferentes compartimentos ambientais e pode provocar diversas doenças em seres humanos e em animais.

Nas crianças, os problemas podem começar na gravidez. Se os níveis de contaminação forem muito elevados, pode haver abortamentos ou o diagnóstico de paralisia cerebral, deformidades e malformação congênita. Os menores também podem desenvolver limitações na fala e na mobilidade. Na maioria das vezes, as lesões são irreversíveis, provocando impactos na vida adulta. 

Estudos recentes realizados com indígenas do Povo Munduruku que vivem na região do Médio Tapajós, no Estado do Pará, revelam alterações neurológicas e psicológicas em adultos e atrasos no desenvolvimento de crianças associados ao consumo de peixes contaminados por mercúrio.

O efeito nefasto do mercúrio na saúde já foi comprovado entre os Yanomami também. Segundo estudo da Fiocruz com apoio do ISA, na comunidade de Aracaçá, na região de Waikás, às margens do rio Uraricoera, onde há forte presença garimpeira, 92% das pessoas examinadas apresentaram contaminação por mercúrio. 

“Em síntese, a presença de garimpos em terras indígenas, associada ao uso indiscriminado de mercúrio, diferente do que muitos políticos e empresários dizem, não traz riqueza e desenvolvimento às comunidades. Pelo contrário, deixa um legado de mazelas e problemas ambientais que contribui para perpetuar o ciclo de pobreza, de miséria e desigualdade, na Amazônia”, escrevem os autores do estudo.

Impactos para os pescadores de Roraima

A realidade verificada pelo estudo gera impactos diretos nas atividades das comunidades de pescadores artesanais de Roraima. Sem ter qualquer relação com o garimpo ilegal, eles acabam sendo prejudicados pela atividade criminosa ao terem seu principal ganha-pão, o peixe, contaminado por altas concentrações de mercúrio, conforme revela o estudo conduzido pelos pesquisadores. 

Segundo representantes da federação e de colônias de pesquisadores de Roraima: "alguns dos peixes mais apreciados pelos consumidores, como o filhote, estão muito contaminados. Isso causa prejuízo para os pescadores, e faz adoecer a população de Roraima. Felizmente ainda temos peixes importantes, como a matrinxã, que estão saudáveis para o consumo. Mas se a contaminação não acabar, em breve, não teremos mais peixe saudável para comer."    

Na lista de recomendações feita ao final da nota técnica, os pesquisadores orientam a elaboração de mecanismos de proteção financeira ao setor pesqueiro, com o intuito de evitar que pescadores artesanais sejam impactados economicamente pela restrição ao consumo de diversas espécies de peixes contaminados. 

De acordo com os autores, é importante aplicar o princípio do poluidor-pagador. Ou seja, quem deve se responsabilizar pelas perdas econômicas provocadas no estado de Roraima são as pessoas físicas e jurídicas que investem e fomentam o garimpo ilegal na região, e não a população local.

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