19/10/2015
É difícil de acreditar, mas há quem veja num desastre causado por chuva ou terremoto uma oportunidade para se criar caos, reduzir direitos e produzir exclusão social. Se de um lado essas forças conservadoras se apresentam sem constrangimento, de outro, há quem trabalhe para buscar sob os escombros das tragédias pistas para entendê-las dentro de um quadro amplo, não mais como um acidente das forças da natureza, mas como um sintoma de uma formação social alicerçada em injustiça. Alguns dos mais importantes pesquisadores do mundo sobre temas prementes como os desastres causados por mudanças climáticas, enchentes e escassez de água, estiveram no seminário internacional Desnaturalização dos desastres e mobilização comunitária: novo regime de produção do saber, realizado nos dias 15 e 16 de outubro, na Fiocruz.
Representantes participam de mesa de abertura do seminário internacional 'Desnaturalização dos desastres e mobilização comunitária' (foto: Virgínia : Virgínia Damas, Ensp/Fiocruz)Como o próprio nome do evento indica, a iniciativa era não só discutir os desastres chamados de naturais a despeito de suas causas sociais, mas também refletir sobre a necessidade de se aumentar o diálogo entre a pesquisa acadêmica e o saber popular, fundamental para lidar com as adversidades da natureza. Presente na mesa de abertura, Paulo Gadelha, presidente da Fiocruz, lembrou do papel que a Fundação procura desempenhar na geração de conhecimento compartilhada com povos tradicionais e a população em geral. "A Fiocruz quer cada vez mais construir essa coprodução. Nós acreditamos que o conhecimento não é produzido dentro dos muros dos centros de pesquisa", esclareceu. "No caso dos desastres, nossos estudos e esse seminário reafirmam o compromisso que assumimos em um de nossos congressos internos de colocar meio ambiente e saúde como uma das nossas principais linhas de trabalho. O conhecimento sobre os desastres é importante, ainda, politicamente, já que muitas vezes se usa a ideia de caos, de excepcionalidade, para reduzir políticas de saúde e direitos".
Diretor da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), Hermano Castro rememorou uma lição de conhecimento compartilhado recebida na prática. "Recentemente, eu estive em Quito, no Equador, e um amigo que me recebeu lá me deu a seguinte orientação: em caso de terremoto, procure se informar sobre o que fazer com algum indígena, porque são eles que habitam essa terra há milhares de anos e melhor sabem lidar com esse fenômeno", afirmou.
Apesar de detentores desse conhecimento, na forma como nossa sociedade está organizada, são os mais pobres que pagam a conta dos desastres, como lembrou Ivo Poletto, do Fórum de Mudanças Climáticas e Justiça Social. "Num seminário como esse, temos que refletir sobre o que as pessoas sentem por terem perdido não só a casa, mas a vida que estava presente nos amigos, vizinhos e parentes mortos. Quando falamos sobre a chuva na região serrana do Rio de Janeiro em 2011, existe o número oficial de cerca de 900 mortes, mas há o sentimento seguro das pessoas de que chegariam até a 4 mil", destacou Poletto.
Paulo Gadelha, presidente da Fiocruz, lembrou do papel que a Fundação procura desempenhar na geração de conhecimento compartilhada com povos tradicionais e a população em geral (foto: Virgínia Damas)
Para o sociólogo argentino José Esteban Castro, atualmente catedrático da universidade de Newcastle, na Inglaterra, e professor visitante na Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais, a Flacso, do México, desastres como esse são uma manifestação da formação sociológica dos países da América Latina. "Apesar de parecer um slogan repetitivo, precisamos aprofundar a compreensão do processo que faz com que, por exemplo, as políticas da água sejam determinadas pelo caráter capitalista das sociedades", disse.
Quando se fala de desastres que acabam com famílias inteiras e deixam centenas de mortos e milhares de pessoas sem casas, difícil imaginar que o estarrecimento e a tristeza não sejam sentimentos unânimes, mas nem sempre é o que acontece, como se pode concluir da fala do professor José Arriscado Nunes, da Universidade de Coimbra. "Eu me lembro de algumas entrevistas dadas na ocasião da passagem do furação Katrina, que destruiu boa parte da cidade de Nova Orleans", recordou. "Algumas dessas intervenções eram no sentido de dizer que aquela destruição era uma oportunidade para se reconstruir a cidade sem a população negra, sem as escolas públicas, sem aqueles a que certa parte daquela sociedade considera como resto". Sarcástico, Arriscado Nunes lembrou que ter dinheiro em contas no exterior não será solução no caso de alguns desastres. "Quando faltar água, de nada vai adiantar ter dinheiro nos bancos da Suíça. Esse dinheiro pode até, num primeiro momento, ajudar na estocagem da água, mas a longo prazo, todos estarão na mesma situação", apontou.