05/06/2018
Ricardo Valverde (Agência Fiocruz de Notícias)
O acervo que constitui hoje a Seção de Obras Raras da Biblioteca de Manguinhos, sediada no terceiro andar do Castelo Mourisco, começou a ser formado logo nos primórdios do então Instituto Soroterápico Federal (embrião da atual Fiocruz), por iniciativa de seu primeiro diretor, o barão de Pedro Afonso. A primeira e improvisada biblioteca ficava no barracão das obras de construção dos prédios do Instituto, por volta de 1902. Uma fotografia de 1904, hoje ampliada em um grande painel, mostra uma reunião comandada por Oswaldo Cruz, a chamada “mesa das quartas-feiras”. A cada quarta-feira Cruz distribuía artigos científicos para que fossem discutidos pelos pesquisadores na semana seguinte. Assim se passaram alguns anos, até que a biblioteca fosse instalada em definitivo no Castelo, em 1909, e a mesa foi transferida para o local, onde está até hoje. Mais de 100 anos depois, o acervo da Seção de Obras Raras, digitalizado, pode ser consultado também pela internet.
Acervo tem cerca de 50 mil itens, entre livros, teses, folhetos, periódicos, lâminas histopatológicas, manuscritos e até um LP de uma campanha sanitária promovida pelo Ministério da Saúde nos anos 1950 (foto: Peter Ilicciev)A história da Biblioteca de Manguinhos (BM) começou oficialmente ligada ao seu espaço no Castelo em 1909, antes que todo o prédio estivesse pronto. Com o passar das décadas e o grande aumento de itens, a maior parte do acervo foi transferida para um novo prédio, também no campus de Manguinhos, inaugurado em 1995 e no qual atualmente funcionam a Biblioteca de Manguinhos e a sede do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica (Icict/Fiocruz).
“O corte temporal do acervo de Obras Raras é de 1930 para trás, exceção feita para as edições limitadas, raras, comemorativas ou autografadas, de acordo com critérios universais e relativos de raridade. O escopo é o das ciências biomédicas”, diz a chefe da Seção, Maria Claudia Santiago. As obras da área de higiene, por exemplo, que já integraram o acervo original, estão mantidas, assim como outras temáticas que hoje não fazem parte do escopo da Biblioteca de Manguinhos mas que fazem parte da memória da pesquisa na Fiocruz. Segundo Maria Claudia, o público procura o acervo não apenas por interesse na área biomédica, mas também na de história das ciências e da saúde.
O item mais antigo, intitulado Rimas sacras, é de 1616 e veio do acervo de 1.153 itens do falecido médico Antônio Fernandes Figueira. Publicada na Espanha, o monograma "IHS" que era colocado nas publicações dos livros da Companhia de Jesus e logo após todo o processo de licença de publicação da obra. Depois vem História naturalis brasilae, a primeira obra a catalogar a região da Mata Atlântica de Pernambuco, de 1648, de autoria de William Piso e Georg Marggraf. Piso e Marggraf faziam parte da comitiva que se instalou no Recife, trazida por Maurício de Nassau no período do domínio holandês no Nordeste.
Alguns itens preciosos do acervo, entre outros, são Osservazioni di Francescio Redi; Formulário médico, manuscrito atribuído a jesuítas (1703) e que foi contemplado para o Registro Nacional do Brasil do Programa Memória do Mundo da Unesco; e a tese de doutorado de Oswaldo Cruz – A vehiculação microbiana pelas águas (1893). Apontado por estudiosos como o livro que inspirou Oswaldo Cruz ao imaginar o estilo arquitetônico no qual seria construído o Pavilhão Mourisco, O Alhambra, de 1906, integra o acervo, assim como Annalen der Physik, periódico autografado por Albert Einstein em sua visita à Fiocruz, em 1925, e no qual publicou a teoria da relatividade.
Maria Claudia diz que o título mais procurado é o Brazil Medico, revista semanal de medicina e cirurgia que se constitui também em uma das maiores coleções. O periódico foi publicado durante 84 anos, ou seja, são 84 volumes no total. Começou a sair do prelo em 1887 e foi impresso até 1971. “Por questão de direitos autorais não podemos disponibilizar o acesso virtual a todos os volumes. Hoje só vamos até 1947. Fizemos uma parceria com a Biblioteca Nacional e a UFRJ para viabilizar essa coleção completa em formato digital”. Os volumes sobre as expedições da Comissão Rondon – a biblioteca da Fiocruz tem 80 de um total de 110 –, também são muito consultadas. As obras registram as expedições a partir de registros de cientistas que participaram das viagens, entre eles pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz.
O acervo tem cerca de 50 mil itens, entre livros, teses, folhetos, periódicos, lâminas histopatológicas, manuscritos e até um LP de uma campanha sanitária promovida pelo Ministério da Saúde nos anos 1950. “Só de teses são cerca de 10 mil. Temos teses do século 19, como a do pai de Oswaldo Cruz. E até o folheto do consultório dele”, observa Maria Claudia.
A Seção de Obras Raras funciona das 8h às 16h30, com um sistema de abertura e fechamento diferenciado do restante do Castelo. Maria Claudia pede que os interessados telefonem para agendar consulta e assim permitir que a equipe localize e prepare o material. Se a obra não tiver condição de consulta será feita uma busca para saber se está digitalizada. Se houver condição, se a obra estiver limpa, higienizada e vistoriada, alguém da equipe fica o tempo todo junto da pessoa que faz a consulta, para orientar o manuseio e mostrar como a obra deve ser utilizada. O acesso físico de obras já disponíveis em formato digital só é permitido mediante avaliação do item procurado. Também é avaliada a necessidade do usuário e o motivo da consulta.
Annalen der Physik, periódico autografado por Albert Einstein em sua visita à Fiocruz, em 1925, e no qual ele publicou a teoria da relatividade (foto: Raquel Portugal, Icict/Fiocruz)
Maria Claudia diz que as regras de segurança foram bastante reforçadas depois de um furto ocorrido em 2006. Apenas parte do material furtado foi recuperada. “O furto foi de livros raros, ilustrados, que têm grande valor de mercado. Foram identificados quando uma pessoa tentou passar com alguns desses itens pela fronteira com a Argentina, em Porto Iguazu, e foi presa. A aduana argentina apreendeu as peças e as enviou para o Brasil. Nem tudo foi encontrado. Ainda há lacunas. Das obras que conseguimos recuperar, algumas chegaram mutiladas, rasgadas, molhadas. Existe um forte tráfico internacional de livros raros, que movimenta muito dinheiro. Há colecionadores que compram por encomenda”, afirma a chefe da Seção, ressaltando que foi montado um sistema de monitoramento eletrônico para acesso à área de guarda.
A equipe da Seção de Obras Raras é enxuta. Além da chefe trabalham no setor três bibliotecárias e uma recepcionista. Elas contam com o apoio do Laboratório de Conservação de Obras, que dispõe de um polo no Castelo, com duas funcionárias.