Início do conteúdo

01/03/2006

Victor Valla

O americano que desembarcou no Brasil sem falar português

Ricardo Valverde


Victor praticamente desconhecia o Brasil - se fosse europeu talvez soubesse das conquistas no futebol e das duas Copas do Mundo já então vencidas pela Seleção Canarinho, possivelmente identificaria Pelé e Garrincha se os visse numa fotografia, mas sendo americano o esporte bretão era algo como o hóquei sobre patins para um brasileiro. O idioma era outra barreira a ser ultrapassada. Mas ele foi aconselhado, por amigos, a não aprender português. "Eles diziam que tentar aprender só dificultaria o conhecimento. O ideal seria aprender morando no Brasil. E assim vim para cá sem saber uma palavra e sem ter qualquer contato anterior com a língua". No entanto, a última flor do Lácio não foi problema para ele, que aprendeu o português em apenas quatro meses depois da chegada ao país, ensinado pelos franciscanos de Petrópolis.

Foto: Peter Ilicciev.
 

Despolitizado, Victor chegou ao Brasil em agosto, já com o golpe militar de 1964 - que ocorreu em 31 de março - na praça. Ele sabia do golpe e tinha visto imagens da quartelada na TV americana, que mostrava tanques de guerra nas ruas do Rio de Janeiro, mas provavelmente não saberia explicar o que estava por trás do episódio que fez o Brasil regredir. Ele e os outros três religiosos que o acompanhavam passaram rapidamente por Campinas e de lá foram todos para o Centro de Formação Internacional, administrado pelos franciscanos, em Petrópolis, onde Victor teve aulas de Brasil. Os franciscanos abrigavam estrangeiros de vários países, que aprendiam a língua, trocavam conhecimentos e conheciam a pobreza e a miséria brasileiras. Vinculados à então nascente teologia da libertação, os franciscanos mantinham um ambiente saudavelmente hostil ao golpe. "Foi uma grande vivência, porque lá eu me politizei. Fiz curso de história junto com dom Pedro Casaldáliga", diz Victor, lembrando do "bispo vermelho" espanhol que foi seu colega na serra fluminense e que durante a ditadura foi uma pedra na botina dos militares. Ao tomar consciência do país que o cercava, Victor passou a falar as mesmas línguas de Casaldáliga: o compromisso social e o português. O método era simples e massacrante: os professores os faziam repetir a língua das 8h às 18h. Em cinco meses estavam falando.

À noite, com os colegas do Centro de Formação Internacional, Victor saía para conhecer a cidade serrana. Com eles andava pelas favelas e descobria as desigualdades de um país ainda muito atrasado. Entre os companheiros estavam padres operários que vieram da França e sacerdotes progressistas que, perseguidos pela repressão no Rio, subiam as montanhas para se esconder em Petrópolis. Esses contavam o que era o golpe militar, o que serviu para abrir os olhos de Victor. Ele passou a entender com minúcias a relação entre o Brasil e seu país, os Estados Unidos.

Entre os professores que o marcaram naquela fase Victor destaca um jesuíta uruguaio que, em sua opinião, "era fantástico". O mestre provocava os alunos. "Ele dizia que os padres vinham ao Brasil para salvar almas e levar os pobres para a missa. Com isso estragavam a vida deles (risos). E que as freiras se deitavam na hora em que a população levantava para trabalhar. Ou seja, aqueles religiosos estavam desconectados da realidade do povo". Com o passar do tempo, as freiras tiraram o hábito, passaram a ler Jorge Amado, aprenderam a fumar. O próprio Victor deixou de usar a batina e nunca mais a vestiu. Afinal, eram os anos 60, que apesar do golpe e da maré reacionária foram marcados por contestação e transgressão.

Financeiramente, Victor estava tranqüilo, porque recebia um dinheiro da Ordem pra pagar o curso dos franciscanos e se manter. "Mas tenho certeza de que, se eles soubessem como era o curso, não mandariam dinheiro", diverte-se. O curso durou quatro meses, com aulas todos dias, o dia todo. Com tempo livre nos fins de semana, Victor passeava e aprendeu a beber caipirinha. Ele costumava descer a serra para ir ao Rio, onde foi apresentado à bebida verde-amarela - virou fã.

Depois do curso ele foi designado pra trabalhar no Colégio Notre Dame, em Campinas, que pertencia à ordem. "Quando cheguei lá, em 1965, havia um encontro clandestino da União Nacional dos Estudantes (UNE), algo que achei incrível. Como o colégio era de americanos, não levantaria suspeitas. Um dos que faziam parte era Frei Betto, então secundarista. Foi importante porque eu estava ouvindo discursos sobre as mudanças no país. Não adianta atacar pobreza, tem que mudar estruturas. Era o que todos diziam".

Voltar ao topo Voltar