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Victor Valla

Victor Valla

Uma vida dedicada a entender os pobres

Ricardo Valverde

Sem saber nada sobre o Brasil e sem conhecer uma só palavra em português, um jovem americano filiado à congregação católica dos Irmãos de Santa Cruz desembarcou no país num momento em que muitos estavam fugindo: logo após o golpe militar de 1964. Com grau zero de politização e em crise com a sua vocação religiosa, o californiano Victor Valla decidiu vir para cá numa tentativa de fugir da influência de seus colegas de congregação. Victor precisava de liberdade para decidir seu destino e acreditava que seria nos trópicos, numa terra inteiramente diferente da sua, que este objetivo seria alcançado. Hoje, mais de 40 anos depois de sua chegada, Victor Valla é pesquisador-titular da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp) da Fiocruz, tendo acumulado, ao longo destas décadas, uma enorme experiência de engajamento político e de trabalho com os pobres, em diversos estados - ele é um dos raros acadêmicos brasileiros que atua diretamente com os segmentos mais miseráveis da população, conciliando saber científico e experiência popular. Para Valla, os pobres, mais do que aprender, têm muito a ensinar às elites.

 
Foto: André Az.
 

Locomovendo-se com dificuldade desde que sofreu um acidente vascular cerebral (AVC) em 2001, Valla, de 68 anos, recebe o repórter em sua sala na Ensp para recordar a sua trajetória. Ele ainda mantém o sotaque, da mesma forma que conserva a delicadeza e a elegância que, segundo quem o conhece de perto, sempre o caracterizaram. Com quatro filhos e dois netos, casado pela terceira com a educadora Kita, Valla relembra sua vida desde que era um garoto em Los Angeles.

Nascido em agosto de 1937 em uma família extremamente católica, ele freqüentou escolas religiosas no primeiro e segundo graus. A religião estava no dia a dia dos Valla e, ao lado de pais e irmãos, o garoto ia à missa todo domingo. Eles moravam nos morros perto de Hollywood, já na época a meca do cinema, porque não queriam residir na cidade. Queriam tranqüilidade. O lugar chamava-se Studio City, bem perto de North Hollywood, uma área de Los Angeles procurada por pessoas famosas, que tinham mansões com piscinas. Como o pai dizia que eles não precisavam de piscina em casa, o garoto nadava nas dos lares vizinhos.

Terceiro filho de um total de quatro, Victor foi batizado com o nome do pai, um italiano de Gênova que era vendedor de imóveis. A mãe, Curtina Coffey, era uma dona de casa descendente de irlandeses e escoceses. Os irmãos, Anthony Michael, Charles Joseph e Maria, brigavam muito quando pequenos. Eles cresceram mas as brigas continuam, agora por motivos políticos. Um irmão é partidário de George W. Bush. O outro não tem definição. A irmã é ligada à teologia da libertação. A influência religiosa foi tão forte que a irmã é freira, o irmão mais velho ordenou-se padre e o irmão mais novo também, embora depois tenha largado a batina. Maria é madre superiora das carmelitas e é uma personalidade famosa nos Estados Unidos. Responsável pela formação das freiras da Costa Leste à Oeste do país, é com ela que Victor tem a relação mais próxima entre os irmãos.

Apesar de viver num ambiente em que se respirava religião todo o tempo - até os dias eram vividos de acordo com o santo de cada jornada - Victor costumava brincar com os colegas e jogar futebol americano e beisebol, e assim passou a primeira infância, uma época em que os EUA impuseram sua supremacia ao mundo ao saírem vitoriosos da Segunda Guerra Mundial. Ele gostava dos times de beisebol Los Angeles Angels, um poderoso esquadrão da cidade de Anaheim, na Califórnia, e Hollywood Stars, que competia numa liga regional. Nos dias seguintes aos jogos, corria às bancas para comprar o jornal e ver as fotos de seus ídolos - imagens e textos eram recortados e guardados. E da mesma forma que outros milhões de americanos, Victor era fã do mítico jogador Babe Ruth, considerado um dos maiores de todos os tempos.

Foto: Peter Ilicciev.
 

Aluno da Notre Dame High School, ele logo cedo, aos 12 anos, sentiu aquilo que muitos identificam como o "chamado para a vocação religiosa". Hoje, relembrando a época, Victor acredita que nessa idade se é muito jovem para tomar tal decisão. "Não é legal. Eu não deixei de namorar, por exemplo, mas podia ter feito muito mais. É exigir demais de um garoto". Nunca foi - e nem quis ser - ordenado padre ou frei, mas foi irmão religioso. "No ambiente em que fui criado, decepcionei meus pais por ser "apenas" irmão". Victor cursou faculdade na universidade dos padres, a Saint Edwards, em Austin, no Texas, onde se graduou na área de formação geral (literatura, história e humanidades). Ele entrou para Saint Edwards com 16 anos. Na universidade Victor pôde praticar com afinco o basquete, jogando como ala, e chegou à seleção universitária, pela qual disputou torneios. Nos fins de semana, saía para dançar dixieland com os amigos.

Victor fez os votos característicos dos que seguem a vida sacerdotal católica, mas não celebrava os sacramentos. Ele queria dar aulas e assim foi preparado na faculdade - sua carreira seria a docência. Houve momentos em que passou pela sua cabeça deixar de ser irmão, mas ele se manteve. "Cria-se armadilha, que é a vocação... portanto, se Deus chama, como recusar um chamado Dele?" Angustiado com aquela situação, ele lecionava no equivalente ao ensino médio brasileiro, em Los Angeles e em Austin, e dividia seu tempo entre as duas cidades. Como a insatisfação era crescente, Victor começou a pensar em sair dos Estados Unidos para escapar dos religiosos. Vivia uma crise religiosa - não de fé, mas de vocação. Decidiu, então, vir para o Brasil.

"Vou resolver isso viajando", disse, resoluto, à epoca. Ele tinha amigos que conheciam o Brasil e sugeriram a viagem para a América do Sul. Victor já não estava muito ligado à família, portanto mudar-se para um país distante, do qual pouco ou nada sabia, não era um grande sacrifício. Afinal, já havia se acostumado a ficar longe dos parentes desde que ingressara na Ordem, perdendo parte do vínculo com a família. Ele morava em um mosteiro, onde dava aulas.

Ricardo Valverde / Março de 2006

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